terça-feira, 28 de outubro de 2008

II. Islão e cristianismo

Segunda diferença inelutável, a complexidade. O profeta insistiu sobre o facto de Deus não ter associados. Essa insistência só se compreende perante a doutrina cristã. É evidente que nisto o Islão não inovou. Toda a espécie de heresias do arianismo extremo à sua versão moderada da “homoiousia” já o tinham dito. A verdade é que desde muito cedo (um mistério não só da economia da salvação mas também histórico) tanto a santíssima trindade como a dupla natureza de Cristo foram enunciadas de modo mais ou menos expresso pelo cristianismo.

A santíssima trindade e a dupla natureza de Cristo levantam problemas de toda a espécie: lógicos, matemáticos, metafísicos, retóricos. Falar num Deus único sem associados é no fim de contas reduzir à sua forma mais simples o problema da existência. O problema do Uno foi desenvolvido até à exaustão sobretudo pelo neoplatonismo, de que o cristianismo é herdeiro. Mas o cristão tem outros problemas com que lidar. A complexidade do dois e do três na divindade permitiu uma elaboração não apenas filosófica, mas igualmente teológica, matemática e lógica infinitamente complexas. Ao longo de toda a história do pensamento cristão se vê uma importância do ternário que não se encontra no Islão. Hegel é o exemplo popularmente mais conhecido, mas São Boaventura seria outro bom exemplo (no Oriente Gregório Palamas, mas esse fica para outras núpcias).

O cristão defronta-se com um problema: a identidade do Um, do Dois e do Três. Não é por acaso que a matemática europeia é infinitamente mais complexa e rica que a islâmica desde há cerca de mil anos. É que o problema do uno não é a sua enunciação, mas a sua relação com o múltiplo. Enunciar o uno sem mais é exercício de rotina depois de Platão.

Embora o desconforto dos números imaginários e complexos tenha sido sentido por força do paradigma clássico dos números naturais e pitagóricos, embora matemáticos árabes e persas se tenham defrontado com passagens de cálculo com números que hoje em dia chamamos de complexos, não é por acaso que são europeus que transcendem estes problemas, que acolhem estes números. Não é por acaso que é o católico Cauchy que desenvolve a teoria das funções complexas, que é um cristão Cantor que desenvolve a teoria dos transfinitos. O seu espaço mental foi elaborado durante séculos para os preparar para uma complexidade, também numérica, que um Deus sem associados nunca obrigou a pensar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Aqui é que já discordo um bocado do Post, nomeadamente da comparação numerismo(algo de índole pagão e condenado pela Igreja em vários concílios)/Trinitarismo, na medida em que discorrer sobre a Santíssima Trindade já é de per si um bocado "areia a mais para as nossas camionetas" mas sobretudo naquele sentido arenoso da conhecida interrogação de Santo Agostinho, que nem que enchesse aquele buraco de areia com o mar inteiro compreenderia o conceito...

Com os melhores cumpts.,
CCInez

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Agradeço-lhe o seu comentário e tem toda a razão sob o ponto de vista doutrinário, dogmático.

E tem mesmo razão sob o ponto de vista filosófico, porque os neoplatónicos salientaram várias vezes que o "um" não é um número, na esteira da filsofia clássica.

Mas a análise que aqui faço é civilizacional. Das condições mentais que permitiram a formação de uma civilização.

O que a ciência diz não é decurso lógico de uma religião. Mas sem as bases mentais que esta religião incita e permite o desenvolvimento científico labora no vazio - ou segue outros caminhos.