segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Rei Édipo

«A voz gloriosa, partindo do nevado Parnaso, ordena que se busque o homem que se esconde; erra pelas florestas bravias, pelas cavernas, pelos rochedos, como um toiro, e anda vagabundo, o infeliz, miserável e solitário, para escapar ao oráculo saído do centro da terra; mas o oráculo, que não morre, o persegue por toda a parte.»*

«Maldito seja o que me desatou os pés cruelmente amarrados e me salvou da morte. Em nada lhe estou grato; se tivesse morrido nessa altura, não teria provocado tais dores, aos meus amigos e a mim!»*

Continuando esta pequena incursão por algumas das histórias dos antigos gregos, chegou a altura de lembrar o Rei Édipo, de Sófocles, no qual a questão da identidade se constitui como o centro de toda a acção, que nos mostra, porém, como a progressiva descoberta da identidade de Édipo vem inevitavelmente acompanhada da revelação de um crime. Édipo, com efeito, é aquele que quer, «venha o que vier, conhecer a sua origem, por mais obscura que seja», de tal maneira que assim possa escapar à tragicidade própria da sua existência: o seu crime, portanto, foi o de ter querido ou afirmar-se de tal modo que ele próprio se tornasse o princípio de todas as coisas; ou não se afirmar sequer... em ambos os casos, o seu crime foi o de ter querido a indiferença: ter querido, ainda criança, «fugir e esconder-se onde não pudesse ver cumprirem-se os oráculos vergonhosos e horríveis»; ter querido, já adulto, responder, de uma vez por todas, ao monstruoso enigma que trazia dentro de si: o que é o homem, este ser que questiona acerca de si mesmo?
O homem, de acordo com a concepção trágica de que Sófocles aqui nos dá conta, é este ser capaz de um encontro maravilhoso com a Esfinge: de um olhar de frente o próprio monstro que, no entanto, porque o homem lhe não pode dar resposta, logo a seguir o devora. Por isso nos diz Sófocles que a maior felicidade do homem é «a de parecer feliz e de logo morrer». Mas o homem é também este ser tentado a resolver o enigma e que, tal como Édipo, se subtrai à realidade e se substitui à natureza, sendo essa sua acção horrenda digna dos maiores castigos. É o próprio monstro, então, quem, desesperado, se mata, o que acarreta para o homem um castigo pior do que a morte, pois que agora, absolutamente determinado, já não se pode questionar.
É que «não era um homem qualquer que tinha obrigação de explicar o enigma, mas sim os adivinhos». É o próprio Tirésias quem o diz a Édipo: decifrar o obscuro enigma «foi exactamente o que te perdeu». O crime de Édipo, assim, foi ter ousado responder a «essa cadela, com as suas palavras obscuras, (...) sem o auxílio das aves e dos augúrios». Ele representa o homem que – aproveitando o dito de Protágoras – se impõe a si mesmo como medida de todas as coisas: o homem que se impõe ao próprio lógos ao invés de, colaborando com ele, participar nas delícias do divino palácio do ser.
Édipo, portanto, é o Adão do povo grego (sem esquecer, claro, que Adão é expulso por Deus do jardim do Éden, enquanto que Édipo pede, ele próprio, para sair), símbolo do homem pecador que, vítima do orgulho, se afirma, absolutamente definido, como o senhor de todas as coisas. Por isso se torna «para todos o irmão de seu próprio filho, o filho e o esposo daquela que o gerou, aquele que ocupa o leito de seu pai, depois de o ter matado». Ora, este homem indiferente, absolutamente igual a si mesmo, é o mais infeliz dos homens – porque vive sozinho. E o homem que vive sozinho, incapaz de ouvir as novidades que lhe trazem os mensageiros e os arautos, é um homem injusto: a cólera, a insensatez e o medo tomam sucessivamente conta de si.
A consciência da queda, no entanto, traz consigo a memória das alturas. O homem tem também, portanto, esta possibilidade de voltar a participar na vida dos deuses, que radicalmente se lhe manifesta nesse encontro com a Esfinge, «a Profetiza, a Virgem das garras recurvadas». A esse reencontro com o divino, no entanto, o homem só chega por via da comunidade com o outro, sendo que a comunidade com o outro só acontece por via da acção justa, isto é, da acção bela, corajosa e inteligente – as três verdadeiras virtudes do homem que caminha para o divino e que surgem a partir da própria natureza esfíngica da questão. Por isso nos diz Édipo: «ó encruzilhada, ó vale sombrio, ó bosques de carvalhos, ó estreito passo a que vão dar as três estradas».
Na verdade, o monstro, a que leva a estrada, está já presente no caminho, apresentando-se sob a forma de uma questão cuja figura é a de uma mulher com corpo de leão alado, símbolo das três instâncias que devem ser convocadas neste humano caminhar: a mulher, símbolo da beleza e da sensibilidade estética; o leão, símbolo da coragem, da força viril e primitiva; as asas, símbolo do espírito inteligente que compreende e une todas as coisas (cada uma destas três virtudes opondo-se imediatamente aos três vícios, atrás indicados, do homem só: a beleza opondo-se à cólera; a coragem ao medo; e a inteligência à insensatez).
Reconhecemos aqui, portanto, a estrutura, ou dinamismo, próprio do ser, tal como vinha expresso na Grécia já desde os poemas homéricos: Édipo é o símbolo do homem decaído, que, para expiar o seu crime, tem de, descobrindo e respeitando a estrutura virtuosa do real, reunir-se aos outros homens, com eles se transformando por relação ao que é sempre igual em todos e em cada um, para assim poderem regressar a casa.
A existência deste homem, no entanto, já não é mítica, antes se reconhece ordenada pelo lógos, que permite expressar universalmente essa experiência de um destino trágico a que nenhum homem pode escusar-se e que consiste ou em contrair «vergonhosas núpcias» – que são as do homem que, sozinho e, portanto, injusto, vive na indiferença –, ou em contrair «gloriosas núpcias» – que são as do homem que, em comunidade e, por isso, justo, acolhe em si mesmo o outro. Em ambos os casos, porém, o homem tem de escolher: é esse o seu destino.

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* SÓFOCLES, Rei Édipo, trad. Agostinho da Silva, Ed. Inquérito, Lisboa, 1939, págs. 34 e 69.

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