quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Dos sentimentos de Sócrates

José Sócrates, Primeiro-Ministro de Portugal, afirmou publicamente estar muito satisfeito com a decisão judicial que condenou o Estado português a pagar uma indemnização a Paulo Pedroso: «Não é difícil imaginar o meu estado de espírito – afirmou o Primeiro-Ministro – porque eu vivi intensamente essa época no Partido Socialista. Sei tudo o que se passou e acompanhei com detalhe todo esse processo». Ainda segundo a mesma fonte, quando foi instado a explicar melhor o que era isso que sentia, José Sócrates terá acrescentado: «A minha responsabilidade como político obriga-me a não comentar decisões judiciais, mas repito mais uma vez que não é difícil imaginar aquilo que sinto».
Sabendo que não é politicamente correcto falar deste assunto, devo dizer, no entanto, que me é muito difícil imaginar como é que se sente o Sr. Primeiro-Ministro. E isto pela simples razão de que não considero minimamente verificados os dois pressupostos básicos desta notícia, a saber: primeiro, que o Sr. Primeiro-Ministro é amigo de todos os portugueses, razão pela qual eles sabem como ele se sente; segundo, que o Sr. Primeiro-Ministro é amigo do Sr. Paulo Pedroso, razão a partir da qual podemos imaginar como ele se sente.
Quanto ao primeiro ponto, devo dizer que, no que me diz respeito, não sou amigo do Sr. Primeiro-Ministro. Não há aqui qualquer afirmação política, mas a simples indicação do facto de que eu não conheço pessoalmente José Sócrates. Não frequentámos as mesmas escolas, não temos o mesmo grupo de amigos, não nos cruzámos profissionalmente… enfim: não nos conhecemos. Daí que me é muito difícil saber como ele se sente: está triste com toda esta horrível história em que estão envolvidas crianças e pessoas que lhe são próximas? Está contente com esta vitória judicial de Paulo Pedroso? Está irritado e até zangado por, apesar da vitória e da inocência de Paulo Pedroso, em que acredita, este ir ficar obviamente marcado durante toda a sua vida? Nenhuma das anteriores? O facto é que eu não sei como se sente o Sr. Primeiro-Ministro e o mesmo julgo que se poderá dizer da esmagadora maioria dos portugueses.
Quanto ao segundo ponto, devo também dizer que não sei se o Sr. Primeiro-Ministro é ou não é amigo do Sr. Paulo Pedroso. E, sendo-o, não sei se é pouco amigo, muito amigo, mesmo muito amigo, ou quase irmão. Na verdade, sei que se conhecem do PS. Mas isso diz-me pouco, pelo que me é ainda mais difícil imaginar o que sente o Sr. Primeiro-Ministro. Tanto mais que, como se sabe, os sentimentos são coisa sempre difícil de explicar e muitas vezes não obedecem à razão.
Mas isto não é tudo, porque, na verdade, também me é difícil perceber que o Sr. Primeiro-Ministro tenha dito publicamente aquilo que disse. Porque se José Sócrates é amigo de Paulo Pedroso, está muito bem que, em privado, com ele partilhe os sentimentos que experimentou num caso que a este dizia respeito: que lhos dê a conhecer, que se emocionem e que se abracem. Tudo isso está muito bem. Nada justifica, porém, que o faça em público, ainda que apelando à imaginação dos portugueses. O que lhe dirá, então, em privado: que enquanto Primeiro-Ministro lhe custou muito ver o Estado português ser condenado?
A verdade é que não parece nada bem que o Primeiro-Ministro de um país se afirme publicamente satisfeito quando o Estado que representa é condenado. Muito menos quando essa questão resulta de um processo em que muitas pessoas alegadamente violentadas nos seus corpos e nos seus direitos esperam ainda uma resposta desse mesmo Estado, à guarda do qual estavam, aliás, desde pequenos. Para esses não tem o Sr. Primeiro-Ministro uma palavra pública? Não viveu intensamente esses seus dramas? Não acompanhou em detalhe os seus processos? Não duvido – que fique claro – que também com eles se preocupa o Sr. Primeiro-Ministro. Mas fica mal mostrar-se publicamente satisfeito quando um seu amigo é justificado, enquanto tantos outros, que não conhece, vão, nesse mesmo caso, desesperando da justiça.
Com efeito, não vale aqui a apregoada vitória da justiça, porque o que se perdeu em todo este caso foi, justamente, a justiça. Se há coisa que os portugueses sabem de todo este caso, é isto: que, ao que parece, um homem inocente foi dado como culpado; que, ao que parece, vários homens culpados serão dados como inocentes. E é aqui, Sr. Primeiro-Ministro, que poderá funcionar a imaginação dos portugueses, nomeadamente na procura de razões que expliquem estas injustiças. E se a série televisiva sobre o caso “ballet rose” serviu recentemente para exemplificar o nosso antigo regime e a podridão que o corrompia, pergunto: o que pensarão sobre o nosso regime aqueles que, daqui a uma ou duas gerações, virem a série televisiva sobre o caso “Casa Pia”?

5 comentários:

Anónimo disse...

Eu não sei o que o Sr. Primeiro Ministro sente. Nem imagino.
Agora, sei que por força da acusação feita ao Dr. Paulo Pedroso, seguida da sua prisão(com todo aquele espectaculo na A.R.), o Dr. Ferro Rodrigues foi "assassinado politicamente", com o resultado que é do conhecimento geral - O engº José Socrates "ganhou" o PS, e, com toda a máquina de propaganda por si montada e engendrada, ganhou o País.
Certo é que, volvidos estes anos, eu, agora, sei que não mais VOTAREI NO ENGº SÓCRATES.
CHEGA DE FARSAS E MENTIRAS.

Inez Dentinho disse...

Por um momento, faltaram os filtros na mensagem de José Sócrates, ainda que ela tenha surgido subjectiva, difusa.
Obrigada Gonçalo, vale a pena desmontar cada declaração e dar-lhe um duche de normalidade para que todos possamos recuperar o descernimento sobre a matéria observável.

Redonda disse...

Na mouche!!!

Sofia Rocha disse...

Esta intervenção do primeiro-ministro fez-me lembrar as de um antigo colega de trabalho.
Íamos para as reuniões e era vê-lo a pôr o pezinho, fazer força na pá, a cavar um buraco bem fundo, cavava, cavava, era só terra a voar pelos ares. Cobria-a a ele e aos outros todos.
Nós chamavamos-lhe, caridosamente, "o coveiro".

Anónimo disse...

Ainda bem que arranjou tempo para escrever sobre os “sentimentos” do Sr. Primeiro-Ministro.
O tempo e essa assassina serenidade com que supera a dificuldade de escrever sobre tal assunto.

dutilleul