Gregos e Troianos (I)
Fui inspirado pelo Manuel Fonseca, em diálogo que tivemos abaixo, a escrever algumas notas sobre textos dos antigos gregos. As minhas muitas limitações, porém, para além das que são próprias deste espaço, não o tornam tarefa fácil. Vou, portanto, precisar de ajuda (e não só do Manuel, que sei de bom grado a dará, mas também do Miguel Maduro, que assim nos poderá ir introduzindo na sua anunciada «Teoria da Escolha»). Dito isto, neste primeiro post, começo por uma afirmação e uma advertência.
A afirmação é de Paul Grenet, que no seu livro «Le Thomisme», julgo que logo na primeira página (mas pode bem ser na segunda), dizia que a questão fundamental em torno da qual se desenvolveu a inteligência grega foi a da relação entre o uno e o múltiplo. Vê-lo-emos expressamente num outro post – assim o espero –, ao visitarmos o «Rei Édipo», de Sófocles. Para já, porém, continuemos a ler a «Ilíada», na qual poderemos ver a verdade desta asserção, primeiro, e fazer a tal advertência, depois.
«Canta, ó deusa, a ira do Peleio Aquiles...» Assim começa esta história dos homens protagonizada em Tróia pelo grego Aquiles, filho do rei Peleu e da deusa Tétis e o mais corajoso de todos os guerreiros. Essa ira, que concretamente nos é mostrada a partir das desavenças e dos desamores do herói Aquiles, é o extremo brutal com que os seres humanos reagem perante a consciência trágica da sua própria condição (o outro extremo é o amor), obrigados que estão a escolher entre uma morte eterna e uma vida mortal (é aqui, aliás, que se joga o contributo da filosofia para a «Teoria da Escolha» do Miguel) – questão que Tétis irá expressamente colocar ao seu filho: morrer na guerra de Tróia e ser eternamente lembrado ou reinar longamente em Ftia e logo a seguir ser esquecido. Devemos lembrar, porém, que a narração da «Ilíada» acaba, muitos cantos à frente, no palácio do rei Príamo, com a pacífica celebração do esplêndido banquete fúnebre de Heitor, o herói troiano, o domador de cavalos, cujo corpo, depois de aplacada a sua ira, Aquiles finalmente entrega àquele destroçado pai.
Ora, o que aqui quero propor, a partir da afirmação de Paul Grenet e em íntimo diálogo com o Manuel Fonseca, é que não vejamos Aquiles e Heitor como dois – mas como um só! Aquiles e Heitor, na verdade, são dois aspectos sempre concorrentes numa mesma vida – e numa mesma morte. Tal como o corpo e o espírito; tal como o povo e o herói. Um não se dá sem o outro. Daí a guerra; daí a paz (esta é especialmente para o Manuel). É esta a nossa experiência: a de sermos um que é muitos; a de sermos muitos num.
No nosso tempo, porém, isto já não pode ser: Aquiles é um; Heitor outro... Não há relação entre os dois. Daí a minha propalada advertência. Ao poderoso mito do sólido, que hoje vale absolutamente, dizendo que só é aquilo que se vê com os olhos e que se agarra com as mãos, quero contrapor aquela pequena expressão da Ilíada, várias vezes repescada pelos poetas, segundo a qual os gregos viajavam pelos «líquidos caminhos»...
A moderna inteligência, de facto, científica, cartesiana, põe-se uma identidade firme a partir da qual se quer depois lançar à vida – como se esta não tivesse morte. O seu paradigma é o sólido; o seu fim a manipulação. No seu mundo o amor não tem lugar. E a ira, que, na sua crueza, surge na falta de um amor que houve e que há-de haver, não vai já além do ressentimento – que é a falta de um amor que não houve, não há e não vai haver!
Os antigos gregos, porém, viajavam pelos «líquidos caminhos», nos quais iam encontrando a terra firme. O sólido era sobre as águas, governadas por Poseidon, que com os deuses e os homens tinha guerra e tinha paz. Depois da tempestade, por isso, vinha a bonança. E uma não era sem a outra. E uma era na outra. E nós éramos entre uma e outra e elas eram também em nós. Por isso estas palavras já há tanto tempo escritas ainda hoje nos fazem chorar. Porque mergulham dentro de nós (que, ao que parece, também somos água), trazendo-nos a esse mar revolto e manso onde, escolhendo, cumprimos o nosso destino.
5 comentários:
Bela inspiração!
Gostei muito dos "líquidos caminhos". O sólido é necessáriamente finito e localizável; já o líquido (que também o é) se assemelha mais , pela fluidez, ao etéreo Infinito. Nós, Portugueses, fomos por líquidos caminhos à procura de Cristãos e especiarias - não nos podemos deixar solidificar na Europa cansada e seca.
João Wemans
Caro Gonçalo,
Os meus recursos limitados impõe-me outras escolhas neste momento mas regressarei à teoria da escolha e já com o conhecimento dessa escolha das escolhas com que a filosofia nos confronta,
Miguel
Gonçalo, com atraso - mas como diria a Sofia Galvão, há quem tenha de trabalhar - é de muito bom grado que venho participar no desafio de "re"visitação dos velhos gregos. Em vez de comentar, "postei" e chamei ao texto "Aquiles dos pés velozes".
que seca. !!!!!!!!!!!! Sempre armado em filósofo, Vá dar aulas para oeiras para a Escolinha
Lanço daqui um repto ao Manuel, ao Gonçalo e ao Miguel. Que escrevam sobre Gregas e Troianas, sobre a bela Helena, por exemplo. Fico à espera.
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