Foi Deus que deu esta voz aos irlandeses
O voto dos irlandeses - o único possível na União - representa o «grito de cidadania» de todos os europeus que não puderam pronunciar-se sobre o Tratado de Lisboa. Nele confiámos a insatisfação pela representação não democrática da prática europeia do último meio século. E a ele devemos - depois da Dinamarca, da Holanda e da França, em fases anteriores - a nesga de democracia, leia-se de soberania popular, que sobra a quem sustenta os colarinhos de Bruxelas.
Agora que releio o parágrafo anterior vejo que Louçã ou de Sousa não diriam melhor. Sobretudo na expressão «grito de cidadania». Deveria horrorizar-me com esta tentação de os deskar semanalmente. Mas a verdade aproxima-nos perante a produção, cada vez mais fictícia, da construção política europeia (não extinsível à construção económica, social, cultural/académica).
Vejo uma espécie de revanche irresistível na cabine de voto de um pastor de Galway ecoar no íntimo de um mineiro de Cracóvia ou num velho encostado a um muro de Portalegre. Ou em mim. Ou na consciência perdida de José Manuel Durão Barroso ou de José Sócrates tão amigos de votações, como tementes, «according to the results to come».
O desafio - assim lhe chamou o Primeiro-Ministro irlandês - não se coloca agora a Dublin. Foi lançado pelos desafiadores do seu País à Europa que deve unir-se hoje contra a tentativa de diminuição do voto irlandês, sob pena de fragilizar, ainda mais, a referida construção politica.
O pior é que não acredito na edificação democrática da União Europeia. Esta foi inciada pelo sonho de dois ou três e combinada por outros poucos em seis países. Foi desenvolvida com os pés da economia tendo como cantil democrático para tão longa jornada um Parlamento distante, inoperante, irrelevante.
Assim avançou e cresceu a Aliança. Mas tarde piou a democracia na Europa e, o que é pior, a União «perdeu» terreno cada vez que desceu à consulta popular. A utopia da Comunidade Europeia não sobrevive à utopia da democracia.
Sugiro a bissectriz: o voto nacional sobre o essencial antes de qualquer acordo europeu assinado como pompa e arrogância sob uma tenda como a que vedou o horizonte aos Jerónimos no passado Tratado de Lisboa.
5 comentários:
Faço minhas as palavras da Inez, partilhando a satisfação que me deu o voto da Irlanda - haja
agora a coragem de evoluir no sentido de uma governação mais próxima dos Povos - por enquanto
um desejo utópico...
João Wemans
Se foi Deus, fez mal. Para citar o artigo que o Miguel «posta» mais acima: um referendo é um instrumento «unworthy of a modern democracy». Não o digo agora, depois de conhecido o resultado na Irlanda. Disse-o e escrevi-o antes quando, também em Portugal, muitos atacaram o PM pela sua (do meu ponto de vista certíssima) decisão de evitar uma consulta popular. Ao contrário do que é moda afirmar-se, o recurso a referendos não é uma prova de mais «democraticidade». É, isso sim, uma prova de tibieza de quem tem toda a legitimidade democrática para decidir mas se furta a dizer o óbvio: a qualidade da democracia não se mede pelo seu grau de «directismo».
Caro Pedro, estamos de acordo. Digo no post que a construção europeia não pode ser feita a par de uma democracia directa. O que não significa que o rumo europeu de cada País não seja discutido previamente em casa - antes das Legislativas e antes da assinatura dos Tratados Internacionais - e isso não acontece.
O voto irlandês tem a virtude de tentar reconduzir os homens de Bruxelas à condição de servos dos servos.
Ainda a propósito do post do Miguel, e citando Ackerman/Fishkin, o ponto mais importante parece-me ser que «(...)traditional referendums offer only a crude populist response to the democracy deficit».
Com a agravante de que, hoje mais do que no passado, os referendos tornaram-se alvos vulneráveis a toda a sorte de pequenas e grandes disputas políticas, sem que releve minimamente a conexão (ou sequer, a proximidade) que aquelas possam ter - ou não - com a matéria referendada.
No fundo, e por referência a esse apelo primário do SIM ou NÃO (A FAVOR ou CONTRA), os referendos converteram-se em terreno fértil para o 'vale tudo'!
No pós-guerra, os planeadores do Plano Marshall, que procuraram persuadir os europeus das virtudes do comércio livre, da colaboração internacional e da integração dos Estados tiveram um sucesso limitado, porque na Europa a maioria dos políticos não estava ainda pronta para pensar em grandes projectos de integração económica internacional, para eles, planeamento significava um maior papel do Estado em questões sociais e económicas, foi a época das nacionalizações e do Estado-providência.
Mas o genial Jean Monnet, que trabalhou nos Estados Unidos durante alguns anos, onde adquiriu experiência de colaboração entre Estados, incomum à época na Europa, dedicou-se, no pós-guerra, no planeamento de uma cooperação económica na Europa, e o seu primeiro Plano, apresentado a De Gaulle, foi alargado e adaptado aos termos do Plano Marshall. O seu sucesso, foi também fruto, de uma cultura política que favorecia a tomada de decisões de forma autoritária, quais referendos…
Com o socialista Jacques Delors, a comunidade europeia burocratizou-se, mais leis comuns, mais políticas comuns, passaram a principal ocupação, a Europa cresceu, e quanto mais cresceu mais difícil se tornou administrá-la, o Tratado de Lisboa, que demorou anos é exemplo.
Brian Cowen, primeiro-ministro irlandês e líder da campanha do “sim”, reconheceu não ter lido o tratado na totalidade, e Charlie McCreevy, comissário europeu irlandês veio dizer que “ninguém são de espírito” o faria. Segundo as sondagens, a razão mais invocada pelos eleitores do “não” foi “não saberem no que estavam a votar”.
Se a Europa se concentrar nos mercados livres, na democracia e paz, e deixar querer aprovar cada vez mais regras que todos os estados devem aplicar, mesmo quando discordam deles, talvez não se falasse de impasse…
Inês o seu texto foi dos melhores que li sobre esta questão, obrigado.
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