domingo, 25 de maio de 2008

Sem poetas nem ideais

A nostalgia do passado e a melancolia são sentimentos do Homem de todas as gerações. Sentimos hoje em dia, alguns, senão muitos, que esses sentimentos correspondem a uma mudança de paradigmas na condução do mundo, como se o Progresso inevitável nos levasse sem remédio, nem apelo, para o que não queremos, mas que mesmo assim nos arrasta numa onda avassaladora que o nosso imaginário saudoso não tem força suficiente para travar ou inverter.

No século XX houve uma, para nós, evidente mudança de paradigmas. Um deles é o que corresponde à mudança da noção de tempo. Não que essa mudança tivesse sido inventada no século XX pois, a filosofia moderna já a tinha gizado em Descartes e confirmado com Kant, mas porque o pensamento filosófico “constrói” realidades muito antes dos homens as “viverem”. Não obstante, pelo menos, o romantismo alemão coetâneo cantara logo a sensação de perda de uma vida idílica de harmonia entre o homem e a natureza, em que a natureza era um espelho de uma alma cuja Pátria não estava neste mundo.
Se percorrermos a história da Poesia, encontraremos em diferentes formas este canto e este louvor da união esponsal entre Homem e Natureza nas Cantigas de Amigo ou, muito antes, nas Geórgicas de Virgílio. A própria cultura megalítica, origem da arquitectura, isola no meio da paisagem o lugar de uma manifestação metafísica ao construir templos para uma morada da alma imortal. Como se essa morada fosse uma porta para outro mundo e não alguma coisa que pertencesse a este mundo.
O sentimento romântico de uma Pátria espiritual, uma Ilha dos Amores, ou um Paraíso Perdido, é comum em diferentes expressões e com diferentes oportunidades a toda a Poesia e a toda a Arte.
Teixeira de Pascoais definiu em “Verbo Escuro” o Poeta com aquele que sobe aos píncaros da vida e depois volta cá abaixo para contar aos outros homens aquilo que viu. O Homem constrói através do sentimento saudoso portas para uma outra realidade, um outro mundo por que anseia e que persegue. Entretanto, esta sensação de distância, reforçada por um espírito do tempo que a nega e impossibilita esse desejo de regresso ao Paraíso e cimenta um afastamento inexorável”adoece” a alma dos homens conscientes de que a efemeridade do que vivem se desfaz, se desconstrói e se desertifica sem esperança.
Filho das promessas da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, o Homem do século XX pôs muito alta a fasquia da sua autonomia em relação ao mundo espiritual , ao mundo das ideias enquanto perscrutação do mundo ideal, e, com isso, construiu um desistente realismo sociológico em que , na impossibilidade de travar a onde que o arrasta e inunda, melhor fora organizar-se dentro dessa vertigem e afundar-se no seu realismo desesperado.

Cabe esta reflexão na sugestão balizada pelos posts recentes da Madalena Lello aqui e do Manuel S. Fonseca aqui e no reconhecimento de que vivemos um tempo em que se fala de ideias sem ideal, em que se confundem ideias com acções e programas políticos. É que nessa confusão que não tem qualquer valor lógico-filosófico, se reflectem o tempo do vazio que vivemos inundados pelo “tsunami” da ignorância, da indolência e da apatia. Os políticos que dizem ter uma ideia de qualquer coisa são a expressão acabada dessa ignorância, dessa indolência e dessa apatia, porque ao dizê-lo sabemos logo que têm ideias sem ideal, ou seja, não tem nem podem ter qualquer ideia, porque não abrem qualquer porta para uma outra realidade que nos libertasse do fatalismo e pessimismo do mundo sem ideal.
Ao tempo cujo ideal, ainda que distante, ou por isso mesmo, era um motor da imaginação e da renovação do mundo, sucedeu um tempo em que o ideal foi substituído pelo realismo sociológico. Esse realismo sociológico de fácil apreensão, ou seja, acessível a qualquer homem sem imaginação nem inteligência, naturalmente tem grande difusão pelas suas potencialidades demagógicas. No mesmo passo que semeia a pobreza, vende o igualitarismo que destrói a diferença que sustenta o mundo, a avareza que destrói o amor ao próximo e a inveja que destrói nos outros o Outro. Mas, acima de tudo, o que destrói é o mundo das ideias deduzidas de um Ideal de que cada um, à sua maneira é um intérprete pelo contributo da sua imaginação e inteligência. Planificado, o mundo, deixará de ter Poetas que subam aos píncaros da vida e depois voltem cá abaixo contar aos outros homens aquilo que viram.
O sofrimento consciente ou não do homem actual, filho da modernidade, não é o mesmo do Homem romântico do enlace com a natureza divinizada, nem do Homem saudoso do Paraíso perdido. É o Homem a quem é cortada essa ligação pela destruição do valor da imaginação e da inteligência na relação com o ideal e que assim fica reduzido ao imanentismo da sociologia, ao falso realismo da sociologia, ao pessimismo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente postal.
2+2 são 4 - a isto se resumem os valores ou as ideologias, nos dias que correm.
Infelizmente, não foi esta forma de pensar que caracterizou a civilização.
Precisamos de mais.
José Cunha

Madalena Lello disse...

Como o João Luís diz e bem: “ A nostalgia do passado e a melancolia são sentimentos do Homem de todas as gerações”.
Ao longo dos séculos poetas, escritores, pintores debruçaram-se sobre o tema, e através das suas obras damo-nos conta da evolução e dos vários significados que a melancolia foi sofrendo.
A palavra melancolia, remonta ao século IV a.C. Em grego, melankholia é formada pela associação de dois termos: kholé (bílis) e mêlas (negro) e significa literalmente “bílis negra” um dos quatro fluidos humanos segregados pelo baço. "Bílis negra" era evocada como uma doença ligada ao humor. Cícero, no século I a.C. ligou melancolia à loucura e propôs substituir o termo por furor. Ao longo dos tempos, a palavra melancolia, foi-se perpetuando sobre outros nomes, e o seu significado foi-se transformando consoante as épocas. Aristóteles, foi o primeiro a abandonar a associação de melancolia a uma doença para a associar ao homem de génio, e a partir do filósofo, melancolia foi associada à imaginação. Longe da Grécia, nos desertos do Egipto e da Síria surgia a acédia. No início do século IV muitos ermitas e anacoretas numa ruptura com a sociedade que achavam agonizante, partiram para os desertos para praticar o anacorismo. Foi nos desertos do Médio Oriente que surgiu a palavra acédia, uma versão da melancolia que significava apatia ou indiferença. Desviada da contemplação divina a mente dos anacoretas entregava-se à imaginação. Com o rosto apoiado na concha da mão e ar pensativo criava-se o estereótipo da melancolia que dura até aos dias de hoje. A partir do século V. a acédia passa para o Ocidente medieval, pelo monge Jean Cassien. Ao longo de toda a idade média, a tradição grega de melancolia e a tradição oriental de acédia, misturam-se e sob a tutela de Saturno e Satanás acabam por designar o pior que se pode abater sob o homem. Melancolia e acédia significam agora a mesma coisa: uma tristeza nascida na confusão do espírito, um desgosto, ou amargura imoderada da alma, e é vista pelos cristãos como um pecado a evitar. Nas pinturas de Bruegel, o Velho, é o diabo que assume a posse melancólica.
É a Renascença que retoma a tradição aristotélica de associar a melancolia ao homem de génio, e a famosa gravura de Dürer, Melencolia I, (1514), a obra paradigmática, nela o morcego que vive na escuridão e gosta de sair ao crepúsculo, o terceiro quadrante do dia associada à melancolia, tem inscrito o título nas suas asas. Com o século das Luzes, Diderot em “La religieuse”, (1760), escreve “L’homme est né pour la société. Séparez-le, isolez-le, ses idées se désuniront, son caractère se tournera, mille affections ridicules s’élèveront dans son coeur des pensées extravagantes germeront dans son esprit comme les ronces dans une terre sauvage”. Os filósofos das luzes substituem os valores do céu pela terra e substituem o individual por ideais comunitários. Segue-se o Romantismo, que será o último refúgio da melancolia. O sagrado sublime transfere-se para a natureza. O homem pratica novamente a acédia, agora na contemplação da natureza. O mal do mundo, “weltschmerz” para os alemães, os ingleses chamar-lhe –ão “spleen”. O homem isolado contemplando a natureza é tema recorrente do pintor Caspar David Friedrich.
Já mais próximo de nós, a melancolia transforma-se em neurastenia com Sigmund Freud. Em 1915, Freud compara melancolia ao luto, ambas causam “uma depressão profundamente dolorosa, é suspenso o interesse pelo mundo exterior e a perca da capacidade de amar leva à inibição de qualquer actividade”, mas distingue a melancolia do luto, porque a melancolia provoca também “uma diminuição do sentimento de estima de si próprio”. No luto o objecto perdido é identificado, o mesmo não se passa num estado melancólico. É a última transformação da melancolia - a depressão, que perdura nos nossos dias. Como diz o João Luís, “Planificado, o mundo, deixará de ter Poetas que subam aos píncaros da vida e depois voltem cá abaixo contar aos outros homens aquilo que viram”, porque hoje, mesmo nos desertos, constroem-se hotéis de sete estrelas, e “O sofrimento consciente ou não do homem actual, filho da modernidade, não é o mesmo do Homem romântico do enlace com a natureza divinizada, nem do Homem saudoso do Paraíso perdido”.