Chamem a Autoridade
Era para se chamar assim o post de hoje. Escrever uma coisa séria sobre a Autoridade da Concorrência. Aconteceu, como já me aconteceu antes, que o Manuel Fonseca, com a crónica de Cans, me levou a escrever uma coisa inteiramente diferente.
Ele há o campo, e ele há o campo. Há o campo hardcore e o campo softcore.
Quem não conhece bem o país, fala amiúde sobre a beleza da vida do campo. Fala sobre o silêncio, as cigarras à noite, se for no Alentejo, e muitas vezes, havendo idílio e fundos, até compra um monte, para reconstruír, com aquecimento e piscina. Esta versão softcore do campo leva a que se seja profundamente contra a destruição destes cenários idílicos, contra qualquer modificação, alteração e desenvolvimento destas aldeias portuguesas de presépio.
Depois, claro, há o campo hardcore, aquele sobre o qual já escreveram Soeiro Pereira Gomes, Saramago, José Luís Peixoto. É miserável, é atrasado, é pobre, esventrado, varado pela distância, habitado por gente que fala quase sempre com sotaques cerrados, que quando aparecem na televisão, nos apetece gritar:"- Ponham legendas! ". Das encostas cerradas na Madeira, a Trás-os montes, vemos o fumo a saír das suas casas de pedra mal-amanhadas, com as velhas de preto, curvadas até ao inverosímel.
Os conhecedores do campo softcore, ignoram a vida brutal das pessoas destes sítios, e por isso se interessam tão pouco pelo desenvolvimento do país, ou achando que é melhor que fiquem assim, até para turista ver.
Eu tive a sorte do campo fácil, porque se via o mar da minha casa, de que distava apenas 4 kilómetros. Mas era campo. É verdade que por isso me emancipei, que me viciei nas coisas citadinas, que passo a vida a dizer mal do desconforto do campo. Mas também é verdade que, embora vá o caminho inteiro a resmungar, quando chego sorrio, pensando na sortuda que fui e que sou. Saber de onde vêm as pevides e os tremoços, saber como se faz um chouriço, saber se vai chover ou fazer sol, jogar ás escondidas numa rua inteira, e galgar o mundo sentada numa bicicleta.
Olhar à minha volta, ver aquela gente, atrasada por vezes, a minha gente, ainda que por vezes eu não gostasse que fosse, que sabe que a fruta se começa a descascar pela parte que está tocada ou podre, e pensar, este povo merecia melhor sorte.
É assim ou não é Manuel?
5 comentários:
Ó Sofia, o seu post está cheio de irrecusáveis cambiantes. Satiriza, comove-se e milita um bocadinho. Tudo coisas que subscrevo. Mas para fazer jus a um certo espírito de contradição diria:
1. Que nem toda a gente que compra montes (e eu não me acuso) é insensível às duras realidades do campo;
2. Que mesmo assim as duras realidades do campo já não têm o neo-realismo de Soeiro como maior denominador comum (esperemos é que esses tempos não voltem);
3. Que quando lá se chega - ao campo, claro - e por muito "patronizing" que a declaração possa parecer, se desfazem barreiras e surge, como diz, um sentimento de comunhão raramente ao alcance na cidade.
A sátira é para disfarçar a comoção e a miltância. Só espero que tanta coisa num texto, que eu sinto, que eu sinto, não o torne ininteligível.
1- Quanto ao neo-realismo, vi há um par de meses um programa da Sofia Pinto Coelho, com imagens de há 10 anos e hoje, em que um pai tinha de atravessar um rio com uma vara e os filhos às cavalitas. Fiquei queda e muda, incapaz de sátira.
2 - O Soeiro, ( já ninguém lê os Esteiros, pois não?) foi só uma provocaçãozita, desculpe, não resisti.
3- Quanto à comunhão, está tudo em comunhão até eu chegar, depois acaba.
4- Mas tenho de convir que há dias de Junho quentes que pela tardinha e depois de nos certificarmos que ninguém está a ver, ainda fazemos um grupinho para tomarmos de assalto a figueira do Ti Francisco...
Mesmo o campo Hardcore está em vias de extinção.
Atravesso todos os dias a ponte da leziria. A 10 metros de altura, a perspectiva sobre ela é absolutamente distinta da que tinha antes, quando atravessava a recta do cabo. A leziria é plantada do dia para a noite e uma coisa não se avista - Trabalhadores Rurais.
Apenas uma ou duas máquinas e os respectivos condutores.
Os Neo-realistas de Vila Franca hoje, não têm sobre quem escrever. já não Gaibéus, nem Ganhões. Desapareceram, substituídos pelo tractorista que ganha muito mais, mas por outro lado, nunca será tema de literatura.
...mas aquele "atrasada" lá quase no fim do texto, seria mesmo necessário ? Não haverá por aqui um certo etnocentrismo citadino ?
Gostava de observar lado a lado um reality show em modalidade de concurso de "qualidade de vida sem petróleo" entre a boa malta da geração 60 e um grupinho desses atrasados ....;))
Adivinhem em quem apostava ...;))
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