sábado, 10 de maio de 2008

Pentimento: "Blade Runner: Final Cut"

A forma como "Blade Runner" (um filme marcante para duas gerações de espectadores e com aspectos visionários na sua concepção e concretização) continua a irritar a maioria da "crítica" portuguesa é quase divertida, se não revelasse um leito perfumado - odor a enxofre - de preconceitos. A irritação vem de um ponto muito simples, tão recorrente que se tornou uma banalidade: a maneira como este filme (e parte da obra de realizadores como Spielberg, Michael Mann, Alfonso Cuarón ou Mamoru Oshii) consegue atingir o âmago dos sentidos e das preocupações de uma faixa do "grande público" (uma expressão, de resto, inventada pela "crítica" com sorridente acrimónia). "Blade Runner" foi um gesto de inspiração vanguardista, um salto conceptual mas - imperdoável pecado! - surgiu pela mão de um realizador decorativo, iniciado nas contas da publicidade arrivista, reclinado no seio do "mainstream" industrial - pronto, é mesmo para arder na fogueira...

É um ressentimento que, de resto, não se esforçam demasiado por esconder: como é que uma fita vazia, sem profundidade epistemológica, sem a ruptura do olhar, sem a pulsão dos corpos cibernéticos, sem alcance metafísico para além da competência estéril da direcção artística, etc e tal, consegue atingir tantos espectadores, aumentando as suas margens de culto a cada ano que passa? Mais uma vez, simples: é a banalidade do filme que o torna "popular" (upps! a heresia...).

A generalidade da crítica de cinema portuguesa (ao contrário da inglesa, espanhola e, cada vez mais, francesa) não conseguiu resistir nos últimos anos à fácil tentação de substituir um lugar-comum (grosso modo, "o que é comercial é bom") por outro exactamente igual (grosso modo, "o que é popular é mau") no pólo oposto. Ou seja: a incessante busca do que se revela singular, daquilo que impõe novas interrogações éticas e estéticas, do que é - à falta de melhor síntese - "arte", tornou-se um comportamento obsessivo-compulsivo, e um horizonte de olhar tão limitado como o que baliza a crítica institucionalizada, de ligação directa à engrenagem promocional das "indústrias do cinema".
São visões - e quadros de pensamento - igualmente estreitos, mas aquela que se coloca como oráculo do futuro, defendendo profeticamente a superioridade ética de certos olhares, tem contra si um défice de compreensão - diria mesmo compaixão - pelos materiais específicos do cinema: emoção, encantamento e - a mais terrível das transgressões - uma certa ideia de felicidade.

Voltando a "Blade Runner": a visão de Ridley Scott baseia-se - como sempre, em todas as artes - no trabalho de outros, esses sim já com direito de acesso ao círculo de iluminados. Gente como Moebius, Syd Mead, Enki Bilal, Christin, Philip K. Dick, William S. Burroughs. O problema é que Scott fez um filme de "estética" - ignorando o desenrascanço transgressor de "Alphaville" de Godard", o rigor libertário do - de resto, magnífico - "La Jetée" de Chris Marker, a ontologia cósmica do "2001" de Kubrick. "Blade Runner", dizem eles, é a folclórica porta de entrada do cinema comercial às preocupações de finais do século XX, uma porta que está ao dispor de todos e permite o acesso de qualquer um à discussão de coisas com peso insustentável como "O que é ser humano?" ou "Se não chegamos a Deus, porque não transformarmo-nos Nele?". E transformar o cinema num cartão de livre-acesso à "gravidade do mundo" é, evidentemente, um gesto que não se perdoa. E que deve ser castigado.

PS: a forma como Kathleen Gomes, no "Público" da última sexta-feira, diviniza o alcance "global" das ideias e do cinema de Pedro Costa revela, na minha opinião, um duplo - e duplamente paradoxal - erro de julgamento: torna um bocadinho provinciano o relato de uma efectiva "penetração internacional" (embora sempre, à excepção das belas proezas conquistadas através dps futuros DVD da Criterion e pela mostra na Tate Modern, em círculo muito restrito); e transforma, pela ânsia da mensagem que atravessa todo o texto, Pedro Costa naquilo que ele - parece - mais abominar: uma pequena estrela pop.

2 comentários:

Sofia Rocha disse...

É muito de esquerda não gostar de nada que venha dos EUA...

Anónimo disse...

Adorei seu post!

Pessoal, essa eu tenho que recomendar, dois sites interessantíssimos: www.meus3desejos.com.br e www.videoflix.com.br.

Abs.