Os segredos de Polichinelo
Não conhecia tal criatura, mas uma vez ao ler um livro do Steiner vi referido um cavalheiro chamado Pierre Boutang e o seu livro “Ontologie du secret”. Quanto a Steiner e as limitações do seu discurso, imbuídas de um estetismo de que padece certa cultura europeia na matriz judaica deixarei para outras núpcias, até porque já tratei a questão alhures.
Mas Steiner, se lhe falta lucidez em alguns pontos, será tudo menos tonto e por isso suscitou-me a curiosidade para espreitar o bom do Boutang. Confesso que vi um livro com um instrumentário poderoso mas que me deixou insatisfeito, talvez por minha culpa. Se muitas vezes me sinto a passear em escombros, no caso vi-me rodeado de andaimes que não deixavam perceber o edifício. Talvez a conclusão final seja a de que a ontologia do segredo fica em segredo, salvo injustiça minha.
A verdade é que a o segredo não é questão irrelevante para o espaço público. Uma democracia supostamente resguarda certos tipos de segredos, os do célebre espaço privado, mas repele segredos que respeitem ao espaço público.
Versão simples, bem sei, mas que nos dá algumas pistas para perceber que o tema do segredo é essencial para qualquer regime político, nomeadamente o da democracia.
No caso que agora interessa, é preciso ver que lugar tem o segredo de Polichinelo no espaço público. Visto como inócuo, apenas risível, o simples facto de ser considerado inofensivo já diz algo sobre a saúde de um regime político.
A criatura que começou a carreira fazendo negócios escusos, o que vive de mera rede de relações, o que faz gestos com a mãos em fio de prumo lembrando sempre que é homem de elevados princípios e vive apenas de expedientes, a mulher de vão de escada que assume cargos de suposta importância e por falta de algo a dar apenas tem projectos de dominação pessoal sem verdadeira noção de serviço, todas estas situações podem ser e são segredos de Polichinelo. Apenas suscitam o riso, mas não expulsam os indesejados da vida pública. Mas também factos, as guerras que se fazem com motivos rotos, as esperanças de adesão europeia com motivos mal confessados, as declarações de amor a África mal esclarecidas.
O que caracteriza o segredo de Polichinelo? Três facetas. Só é segredo quando muito para as personagens no palco, é anunciado por uma personagem cómica, e dirigido a um público.
As personagens da comédia ignoram ou fazem-se ignorantes do segredo. Mesmo que o conheçam fazem como se ignorassem. O segredo não é eficaz junto dos actores. Apenas junto das personagens.
O anunciante do segredo é personagem cómica por si mesma, por não levar a sério o segredo que anuncia, mas é cómica antes do mais a situação paradoxal de oficialmente ser segredo e afinal ser pública a informação.
E é pública porque? Aqui entra o terceiro elemento desta farsa. É pública porque o segredo é anunciado ao público. Ora a plateia é exactamente quem não age, quem não pode influenciar o enredo.
Estes três elementos mostram até que ponto o segredo de Polichinelo pode ser multiplamente pernicioso.
Quem está a ser efectivamente gozada não é a personagem no palco, a que supostamente ignora o segredo. Mas a plateia. A essa Polichinelo apenas diz: não podes agir. Assiste ao absurdo, ri-te dele, mas não o podes alterar.
O segredo de Polichinelo vive da inacção e da impotência. Quem o conhece nada pode fazer contra ele. É apenas plateia ou personagem cómica. Numa democracia, a plateia é o povo, que é reunido apenas para rir do segredo, mas a quem é sempre lembrado que é apenas assistente passivo e não actor.
Finalmente o próprio facto de ser visto como inócuo, se tem um efeito pacificador na sociedade, tem-no ao preço de manter a trama incólume, por mais absurda que seja.
Um público escarnecido, impotente e ineficaz é o que se pretende com o segredo de Polichinelo. Numa democracia esse é sempre um dos primeiros passos para a destruição da sua vitalidade. Cria-se um mundo de ilusão em que se chama de participante o que mais não se admite ser que espectador. O que há de menos risível no segredo de Polichinelo é exactamente o facto de ser visto como risível. Não parecendo importante, tem aí a sua condição de sobrevivência. Incrusta-se no espaço público para de lá não sair facilmente. A sua perenidade é feita pelo riso. Corremos assim o risco de que tudo o que seja perene seja por ele infectado.
Alexandre Brandão da Veiga
http://cerclepierreboutang.wordpress.com/
http://www.abebooks.com/products/isbn/9782868395900/Assaf,+Antoine-Joseph/Hommage+a+Pierre+Boutang:+Metaphysicien+Du+Secret+Et+Poete+Du+Desir/
http://robertounicamp.blogspot.com/2008/02/visitando-um-passado-sem-retorno.html
http://books.google.pt/books?id=qstFP4ylK9kC&pg=PA59&lpg=PA59&dq=+%22pierre+boutang%22&source=web&ots=Y1orZZBbm6&sig=jDKDg-SXjnQh1Mp4UYWKT6YNrOM&hl=pt-PT
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