O desacerto político e o acordo ortográfico
No dia 4 de Junho de 1991, na Assembleia da República Portuguesa, foi aprovada, para ratificação, a resolução 26/91 – Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, cujo grande objectivo é o estabelecimento uniforme das normas relativas à grafia das palavras da língua portuguesa em todos os países que oficialmente se expressem na nossa língua, de tal modo que assim se garanta a «unidade essencial da língua portuguesa» e o «seu prestígio internacional».
Vejamos, antes de mais, um pouco da sua história. A Nota explicativa do Acordo (anexo II da referida resolução), começa por explicar que «a existência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, a lusitana e a brasileira, tem sido considerada como largamente prejudicial para a unidade intercontinental do português e para o seu prestígio no Mundo», situação que remonta – sempre de acordo com a referida Nota – a 1911, ano em que foi adoptada a primeira grande reforma ortográfica em Portugal, a qual não foi, porém, extensiva ao Brasil.
Em 1931, por isso, por iniciativa da Academia Brasileira de Letras e com o acordo da Academia das Ciências de Lisboa, foi aprovado o primeiro acordo ortográfico entre Portugal e o Brasil, o qual, no entanto, não produziu os efeitos desejados, o mesmo tendo acontecido, aliás, com a Convenção Ortográfica de 1943 e com a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945.
Em 1971, no Brasil, e em 1973, em Portugal, foram então promulgadas leis que, reduzindo substancialmente as divergências ortográficas entre os dois países, não resolveram as divergências sérias que continuaram a existir entre os dois sistemas ortográficos.
Foi nesse sentido que, em 1975, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram um novo projecto de Acordo, o qual, contudo, sobretudo por causa da situação política que então se vivia em Portugal, não veio a ser oficialmente aprovado.
Já em 1986, na presença dos novos novos países africanos lusófonos nascidos no processo da descolonização portuguesa, voltou a propor-se um Acordo, o qual, em vista de uma reacção fortemente adversa que pareceu gerar-se na opinião pública portuguesa, também não chegou a ser aprovado.
Convencidas que os Acordos de 1945 e de 1986 tinham falhado pela tentativa de imposição de uma unificação ortográfica absoluta, as duas Academias elaboraram então um novo texto, no qual deram uma maior relevância à pronúncia de cada uma das comunidades de expressão portuguesa, critério que balizou a nova proposta de unificação do sistema ortográfico da língua portuguesa.
Foi este Acordo, aprovado em 1990 pela Academia de Ciências de Lisboa, pela Academia Brasileira de Letras e pelas delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe (e, além disso, também aceite pela delegação da Galiza), que foi aprovado, como já se disse, em Junho de 1991, pela Assembleia da República Portuguesa.
O artigo 3º do Acordo, porém, estipulava que o mesmo entraria «em vigor em 1 de Janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.» Ora, tal nunca aconteceu, tendo o Acordo sido apenas ratificado por Portugal, pelo Brasil e por Cabo Verde.
Foi então assinado, em 1998, em Cabo Verde, um Protocolo Modificativo do Acordo, através do qual se retirava a data da sua entrada em vigor, embora mantendo a exigência da sua ratificação por parte de todos os signatários do texto de 1990, o que, mais uma vez, não aconteceu.
Aprovou-se, por isso, em 2004, em São Tomé e Príncipe, um segundo Protocolo Modificativo, o qual, incluindo Timor-Leste entre os países signatários, estabelecia que bastava, para a entrada em vigor do Acordo, que o mesmo fosse ratificado por três membros da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP).
O Acordo foi então ratificado pelo Brasil, por Cabo Verde e por São Tomé e Príncipe, o que, à partida, era o bastante para que entrasse em vigor. Tal, porém – e apesar dos protestos de várias entidades e personalidades dos países ratificantes –, não aconteceu ainda, sobretudo por se ter considerado que Portugal deveria ser incluido na ratificação formal do Acordo e dos seus Protocolos. Foi nesse sentido que o Acordo Ortográfico foi recentemente aprovado pelo Governo português, esperando-se agora a sua ratificação por parte da Assembleia e do Presidente da República.
Posto todo este percurso, julgo, por um lado, que não colhem as duas principais críticas que têm sido feitas ao presente Acordo – uma “científica” e a outra “processual” –, e, por outro, que está ainda por fazer a principal crítica que este Acordo e toda a sua história suscitam: uma avaliação política profunda sobre Portugal.
1. Contra o argumento “científico”, que tem pretendido que o Acordo corrompe e desvirtua a língua portuguesa naquilo que lhe é essencial, é bom lembrar, em primeiro lugar, que o mesmo Acordo tem sido proposto e defendido, desde o princípio – e já lá vão quase 80 anos –, pela Academia de Ciências de Lisboa e pela Academia Brasileira de Letras, que seguramente mais e melhor do que a maioria zelam pela defesa e pela conservação da nossa língua.
O medo gerado na opinião pública, nesse sentido, não se compreende, até porque a simples leitura do texto mostra que, «em relação às alterações de conteúdo, elas afectam sobretudo o caso das consoantes mudas ou não articuladas, o sistema de acentuação gráfica, especialmente das esdrúxulas, e a hifenação», o que, de facto, não implica mudanças substantivas na língua de Camões.
Não é verdade, como muitas vezes se tem dito, que, relativamente ao desaparecimento das consoantes mudas nas palavras, passaremos, em Portugal, a escrever “pato” em vez de “pacto”, ou “fato” em vez de “facto”. Ao contrário, as consoantes mudas só desaparecem, num determinado país, quando não sejam pronunciadas na língua desse país, pelo que, em Portugal, “facto” continuará a escrever-se “facto”, justamente na medida em que se pronuncia “facto”, enquanto no Brasil se escreverá “fato”, que é como por lá se diz (isto só é válido, porém, para as chamadas pronúncias cultas, pelo que não é porque alguém pronuncia “iágua” que passaremos a escrevê-la assim).
As outras principais alterações são, no que diz respeito ao português do Brasil, a eliminação do trema (escreveremos “aguentar” e “arguido” em vez de “agüentar” e “argüido”) e da acentuação do ditongo “ei” nas palavras graves (escreveremos “ideia” e “assembleia” em vez de “idéia” e “assembléia”); e, em todos os países que falam português, a simplificação e a redução do emprego do hífen e a eliminação da acentuação do ditongo “oi” em palavras graves ou paroxítonas (escreveremos “boia” e “heroico” em vez de “bóia” e “heróico”). Sobre tudo isto vide: http://orto.no.sapo.pt/index.htm.
2. A outra crítica que mais vezes tem sido feita, tanto do lado português quanto do brasileiro, prende-se com a questão “processual”, segundo a qual se questiona a necessidade – e até a legitimidade – do Estado legislar sobre a língua, ao que normalmente se contrapõe o exemplo inglês, considerado como mais democrático, onde, apesar das diferentes ortografias utilizadas em Inglaterra e nos Estados Unidos, não se impõe nenhum conjunto uniformizado de regras de bem escrever.
A isto se contrapõe, também habitualmente, que, em França, é à Academia Francesa que cumpre zelar pelo francês, pelo que, o nosso caso, num meio termo entre os exemplos de França e de Inglaterra, revelaria até um equilíbrio muito saudável entre as propostas científicas apresentadas pelas Academias e o sentir do povo democraticamente representado.
Tal questão, porém, por mais interessante que possa ser, ou tornar-se, é hoje, por força das circunstâcias, irrelevante, já que – analogamente, aliás, ao que se passou no caso do segundo referendo sobre o aborto –, tendo a questão ortográfica sido anteriormente objecto de legislação própria, a sua solução terá agora forçosamente que passar pelo crivo da lei.
3. A crítica que deve fazer-se, portanto, é política e é dirigida a Portugal: é política porquanto a língua portuguesa é o maior recurso que temos, o qual deve, como tal, necessariamente informar qualquer estratégia de afirmação de nós mesmos no mundo (económica, social, política e cultural); e é dirigida a Portugal porque a incapacidade de estabelecer um acordo ortográfico se deve sobretudo ao nosso país, e por um período de já quase um século, o que revela que este desacerto político e esta inexistência de uma estratégia estão para além dos partidos e até dos regimes políticos, sendo um problema verdadeiramente nacional.
É lamentável, de facto, que num prazo de um século não tenhamos sido capazes de propor-nos uma estratégia ancorada na nossa história e na nossa língua, a qual fosse capaz de dar sentido a este, ou outro, acordo ortográfico. Porque o acordo ortográfico me parece bom na vigência de um país. E é isso que nos falta: a vigência de um país, já que, do ponto de vista ortográfico, há muito que o acordo está pronto.
Será que, depois de vermos toda a longa história deste “desacordo ortográfico”, não se nos torna mais evidente a recusa da ONU em assumir o português como sua língua oficial? Será que o Instituto Camões, ou outro qualquer, não deveria fundar escolas portuguesas em todo o mundo povoado pelos nossos emigrantes, nas quais se ensinasse e divulgasse a língua e a cultura portuguesas e cujo acesso fosse gratuito às comunidades portuguesas? Será que as Universidades e a Fundação para a Ciência e Tecnologia, ou outra qualquer, não deveriam assegurar as edições e as traduções de referência para todo o mundo português? Será que os nossos editores não deveriam reinventar-se, entusiasmados perante o óbvio alargamento do seu mercado, ao invés de chorarem por nele irem entrar os editores brasileiros? Será que os nossos professores não deveriam estar dispostos a aprender e a ensinar o português de todo o lado e em todo o lado? Será que há alguma ingratidão em Saramago, quando, depois de ganhar o prémio Nobel da literatura, escrevendo em português, prefere viver em Espanha? Será que ainda queremos Portugal?
1 comentários:
Excelente post. 100% de acordo. Muito bem!!!
Luís Lavoura
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