Notas soltas sobre o relatório da ERC
Feito a partir de uma queixa que, em Junho de 2006, o Grupo Parlamentar do PSD fez contra a RTP, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social publicou há dias um relatório no qual faz a avaliação do pluralismo político-partidário no serviço público de televisão, entre Setembro e Dezembro de 2007, o qual poderá, tanto integral quanto resumidamente, ver-se aqui.
O esforço da ERC merece ser felicitado, não só por ser a primeira vez que, entre nós, a presença política e partidária nos operadores de televisão é avaliada com «parâmetros claros, participados e sindicáveis», mas, sobretudo, por essa avaliação se inscrever num projecto mais vasto que a pretende objectiva e continuada. Ficamos, por isso, na expectativa de conhecer o relatório prometido para o final deste mês de Abril, no qual se dará conta da presença político-partidária em todos os operadores televisivos – públicos e privados – sob jurisdição da ERC, durante o ano de 2007. Permitam-me, entretanto, algumas notas sobre este primeiro relatório.
0. Antes disso, porém, uma ressalva. É que sendo os valores de referência utilizados para aferir o equilíbrio das presenças partidárias nos programas televisivos estabelecidos a partir da representatividade parlamentar dos partidos políticos (o que já de si deveria poder ser equilibrado com a análise subjectiva da actividade efectiva desses partidos nos períodos em causa), esses valores deveriam ser os da percentagem dos votos alcançados nas eleições, e não os do número dos deputados, já que não vejo qualquer razão para que o método de Hondt, criado para favorecer a estabilidade governativa, sirva também para determinar a importância quantitativa das presenças das forças políticas nos órgãos de comunicação social, antes pelo contrário. Mas adiante. Vamos às notas.
1. A primeira nota é que, contrariamente ao que tem sido dito na imprensa, sobretudo por Luís Filipe Menezes, o PSD talvez não tenha razão. De facto, se é verdade que o próprio relatório afirma uma «sub-representação sistemática do PSD em todos os blocos informativos analisados» (excepção feita ao Governo Regional da Madeira + PSD Madeira na RTP Madeira, coisa que o relatório, nas suas conclusões, se esqueceu de referir), este não é um dado absoluto.
Com efeito, se excluirmos os números relativos à RTP Açores e à RTP Madeira, francamente mais desequilibrados – mas também menos representativos –, a percentagem da presença do Governo + PS nos blocos informativos anda à volta dos 55%, enquanto que a da oposição anda, obviamente, pelos 45%, o que, sendo o valor de referência 50%, não é em si mesmo revelador de um grande nem preocupante desequilíbrio.
O PSD, além disso, é o único partido em que as aparições televisivas sobre discussões e/ou acontecimentos internos (circa 25%) ultrapassam as que são relativas à análise e à crítica da acção governativa (circa 19%).
Deste modo, talvez que a sub-representação sistemática do PSD nos blocos informativos não se deva, pelo menos inteiramente, a manobras maquiavélicas do governo, como pretende Luís Filipe Menezes, mas também – e sobretudo – à incapacidade efectiva do PSD fazer oposição ao governo, deixando esse espaço para os restantes partidos. É uma hipótese que, a meu ver, talvez valha a pena considerar.
2. Isto, no entanto, é o que tem resumido as discussões em torno do dito relatório, no qual se encontram, porém, questões bem mais interessantes, de algumas das quais sumariamente aqui dou conta. Uma é a excessiva politização da realidade a que todos estamos sistematicamente sujeitos. De facto, se somarmos às peças televisivas cujos intervenientes são, directa ou indirectamente, representantes do governo e de instituições político-partidárias (circa 20%), as aparições do Presidente da República (circa 10%), e as aparições de movimentos cívicos e de sindicatos em interacção com o governo (circa 11%), temos um total aproximado de 41% de peças dedicadas a assuntos exclusivamente políticos. Se a isto somarmos ainda a política europeia e mundial, poderemos imaginar, na ausência de dados objectivos sobre este último ponto, que os factos políticos cobrem mais de 60% da nossa realidade informativa, o que me parece manifestamente excessivo, sobretudo quando comparado com a opinião generalizada sobre a qualidade moral e profissional da classe política.
3. Este facto, por outro lado, é tanto mais significativo quanto essa informação política é maioritarissimamente proveniente da sociedade política estritamente considerada (isto é, do governo e dos partidos políticos e de instituições a eles directamente ligadas), apenas em pequeníssima escala provindo de movimentos actuantes no âmbito da sociedade civil (com efeito, se retirarmos desta equação os sindicatos – que em Portugal, como se sabe, estão em larga medida dependentes dos partidos políticos e das suas agendas –, temos que apenas 5% do total das aparições televisivas são provenientes de movimentos cívicos).
4. A questão que me parece central, porém – a qual, em conjunto com as anteriores, é até alarmante –, é a da confusão existente entre os partidos políticos e o governo. De facto, dos cerca de 55% do total das aparições televisivas que cabem ao Governo + PS, 49% são do Governo e apenas 6% são do PS, razão pela qual o relatório fala num «apagamento do PS, enquanto partido autónomo do governo, nas peças da RTP1, RTP2 e RTPN.»
Ora, este facto, que não é certamente exclusivo do PS, mas comum a todos os partidos que hoje chegam a formar governo, é revelador da quase absoluta instrumentalização a que estão hoje sujeitos os nossos partidos, o que, por outro lado, se constitui como a causa principal da profunda instrumentalização a que tem vindo a ser submetida a nossa administração pública, o que, em conjunto com a excessiva extensão da política a toda a realidade e com a quase inexistência de uma verdadeira sociedade civil, de que atrás falámos, explicam bem o queria dizer António Guterres quando se referiu a Portugal como sendo um pântano.
5. A última nota vai para o Bloco de Esquerda. É que, no que diz respeito à análise da «valência/tom» com que são referidos o governo e os partidos políticos nos blocos operativos da televisão pública, «o BE – como diz o relatório – é o único partido com representação parlamentar que não possui presenças com valência/tom negativo» (as quais, nos restantes partidos, andam entre os 10% e os 20%). O que em rigor também já ia sendo tempo de investigar-se.
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