E daqui a 34 anos?
Ao ouvir o discurso do Presidente da República, neste 25 de Abril de 2008, lembrei-me de um artigo que publiquei em tempos. E pareceu-me fazer sentido recuperá-lo para a blogosfera.
Escrevi então assim. Há exactamente quatro anos.
De há 30 anos, a minha geração lembra essa manhã sem escola, as telefonias ligadas pela casa e uma ansiedade imensa no ar. Todas as rotinas suspensas em nome de um sonho que foi ganhando verosimilhança.
Crianças, então, não podíamos percebê-lo, mas a diferença daquele dia marcaria a certeza da diferença das nossas vidas. Para nós, a liberdade, a democracia, o pluralismo político, os direitos fundamentais, o Estado de Direito seriam realidades tão naturais como a sucessão dos dias. Graças àqueles que, em 25 de Abril de 1974, militares e civis, largaram dos quartéis e encheram as ruas. Como também àqueles que, nos tempos excessivos que se seguiram, souberam defender o essencial, impedindo a subversão do percurso e garantindo a consolidação de uma nova ordem livre, democrática e plural.
Mas crescemos, como, depois de nós, cresceram outros. E, entretanto, nasceram ainda muitos e muitos mais. Portugal é, hoje, um país diferente, feito de gente diferente, num mundo diferente.
De há 30 anos, ficou o núcleo do nosso quadro colectivo de vida. Porém, mesmo aí, com evoluções profundíssimas – a maior parte das quais porventura inimaginável nesse Abril longínquo.
A revolução prometeu democratizar. E democratizou. Mas, 30 anos depois, o balanço inspira reservas. Formalmente, tudo está assegurado e tudo se cumpre na mais estrita regularidade. As instituições existem e funcionam. O povo, ciclicamente convidado ao voto, legitima o exercício do poder. Não obstante, é cada vez mais indisfarçável o abismo que aparta a sociedade civil do universo político. A afluência às urnas diminui ano após ano. O interesse pela actividade política decresce inexoravelmente. E, na normalidade do quotidiano, a participação cívica é inexpressiva. É o tempo da indiferença. O colectivo não convoca. Exacerba-se o hedonismo e, com ele, a relevância dos níveis de sucesso, de conforto e de evasão individuais. A cidadania – entendida como sindicância democrática do poder – converte-se, a esta luz, numa impossibilidade absoluta. Até porque, não se subestime o condicionamento, a matriz cultural é autoritária, centralizadora e anti-liberal.
A revolução prometeu, ainda, descolonizar. E descolonizou. Porém, num processo que não correu bem e que, a esta distância, é forçoso reconhecer que não obteve bons resultados. Em África, deixámos guerra, fome, desespero, corrupção. Em Timor, foi o que se viu. Como insuspeitamente disse António José Saraiva, uma autêntica ‘debandada de pé descalço’, com o que isso encerra de ausência de reflexão, de preparação, de programação. Também, e sobretudo, de responsabilidade. Sobre as cinzas das instituições coloniais, entregámos povos irmãos à sua sorte – sem assumir qualquer cuidado decorrente de quatro séculos de caminho partilhado. No fundo, deixámos uma herança de inviabilidade, que faz da endémica resistência dos novos países à modernização e ao progresso a expressão visível da nossa culpa histórica. Depois e desgraçadamente, não soubemos sequer densificar laços de cooperação privilegiada, capazes de ligar os povos e culturas de língua portuguesa a uma mesma comunidade de desenvolvimento.
Por fim, a revolução prometeu desenvolver. E desenvolveu. Mas fê-lo, sobretudo, a partir do final da década de 80, com o inestimável contributo europeu. Antes disso, o PREC, confiante na dimensão salvífica das reservas de Salazar, destruiu a economia e o sistema financeiro. Logo a seguir, vieram os tempos da bancarrota e do FMI. Mas, com os muitos milhões de Bruxelas e um novo quadro interno na banca e nas empresas, a evolução foi inevitável. Hoje, já nada permite reconhecer o país atávico, cinzento e provinciano do antigo regime. Como, aliás, já quase nada lembra o país militante, ingénuo e leviano dos primeiros verões de liberdade. Foram 30 anos de caminho, cumprido passo a passo, para o bem e para o mal. Porém, precisamente porque é tempo demais para não questionar o sentido das coisas, a grande questão da nossa actualidade colectiva é a própria orientação que levamos. Portugal parece ir vivendo à deriva, sem definir estratégias e sem eleger desígnios. O que é, afinal, intrinsecamente incompatível com uma ideia de futuro. Os países e os povos precisam de saber para onde vão e porquê. Ora, nós, como país e como povo, não prosseguimos nada e não apontamos para nada.
Portanto, a par das inalienáveis conquistas de Abril, consolidadas sobretudo no plano político-formal, é patente que, no plano da obra, sobra alguma insatisfação. E esta remete-nos para algo que veio a revelar-se marcante nestes nossos 30 anos de vida pública: a constância dos protagonismos.
Com efeito, ressalvando o caso de algumas mortes e de alguns (poucos) afastamentos naturais, a generalidade daqueles que a actualidade de há 30 anos assumiu como protagonistas, assim continuam reconhecidos pela actualidade de hoje. São tantos que seria ciclópico nomeá-los, mas é seguro que os documentários evocativos da data, a exibir durante estes dias, nos trarão o registo dos principais. Paralelamente, ao lado destes que perduram como baluartes do regime, os outros poucos que surgem de novo têm a particularidade de nada melhorarem face aos anteriores (significativamente, a maioria foi, afinal, formatada nas jotas dos anos setenta e oitenta). Ou seja, nos protagonismos não há substituição, mas acumulação. E não há refrescamento, mas clonagem.
Por via disto, a vida pública tem vindo a degradar-se. Os mais antigos, senadores que fazem da arena política e do espaço mediático o seu senado, perderam viço, acomodaram-se, ganharam tiques. Os mais recentes, salvo excepções honrosas e marginais, nunca impressionaram. Mas, uns e outros, encontram-se na defesa da intangibilidade do seu estatuto e, prevenindo, blindam os universos partidários às investidas de quaisquer eventuais aventureiros.
Ora, quando está em causa a definição do caminho, a qualificação dos protagonismos é a primeira das prioridades. Dela depende a motivação colectiva e a perspectiva de novos níveis de participação política – é preciso pensar o país, fazer disso agenda e convocar os portugueses para essa imensa discussão.
Para quem há 30 anos era criança, não há, hoje, hesitação possível: sem a inerente rematerialização dos grandes compromissos de Abril, o sistema estiolará. E, daqui a 30 anos, faltará a memória, o sonho e o projecto.
Escrevi então assim. Há exactamente quatro anos.
De há 30 anos, a minha geração lembra essa manhã sem escola, as telefonias ligadas pela casa e uma ansiedade imensa no ar. Todas as rotinas suspensas em nome de um sonho que foi ganhando verosimilhança.
Crianças, então, não podíamos percebê-lo, mas a diferença daquele dia marcaria a certeza da diferença das nossas vidas. Para nós, a liberdade, a democracia, o pluralismo político, os direitos fundamentais, o Estado de Direito seriam realidades tão naturais como a sucessão dos dias. Graças àqueles que, em 25 de Abril de 1974, militares e civis, largaram dos quartéis e encheram as ruas. Como também àqueles que, nos tempos excessivos que se seguiram, souberam defender o essencial, impedindo a subversão do percurso e garantindo a consolidação de uma nova ordem livre, democrática e plural.
Mas crescemos, como, depois de nós, cresceram outros. E, entretanto, nasceram ainda muitos e muitos mais. Portugal é, hoje, um país diferente, feito de gente diferente, num mundo diferente.
De há 30 anos, ficou o núcleo do nosso quadro colectivo de vida. Porém, mesmo aí, com evoluções profundíssimas – a maior parte das quais porventura inimaginável nesse Abril longínquo.
A revolução prometeu democratizar. E democratizou. Mas, 30 anos depois, o balanço inspira reservas. Formalmente, tudo está assegurado e tudo se cumpre na mais estrita regularidade. As instituições existem e funcionam. O povo, ciclicamente convidado ao voto, legitima o exercício do poder. Não obstante, é cada vez mais indisfarçável o abismo que aparta a sociedade civil do universo político. A afluência às urnas diminui ano após ano. O interesse pela actividade política decresce inexoravelmente. E, na normalidade do quotidiano, a participação cívica é inexpressiva. É o tempo da indiferença. O colectivo não convoca. Exacerba-se o hedonismo e, com ele, a relevância dos níveis de sucesso, de conforto e de evasão individuais. A cidadania – entendida como sindicância democrática do poder – converte-se, a esta luz, numa impossibilidade absoluta. Até porque, não se subestime o condicionamento, a matriz cultural é autoritária, centralizadora e anti-liberal.
A revolução prometeu, ainda, descolonizar. E descolonizou. Porém, num processo que não correu bem e que, a esta distância, é forçoso reconhecer que não obteve bons resultados. Em África, deixámos guerra, fome, desespero, corrupção. Em Timor, foi o que se viu. Como insuspeitamente disse António José Saraiva, uma autêntica ‘debandada de pé descalço’, com o que isso encerra de ausência de reflexão, de preparação, de programação. Também, e sobretudo, de responsabilidade. Sobre as cinzas das instituições coloniais, entregámos povos irmãos à sua sorte – sem assumir qualquer cuidado decorrente de quatro séculos de caminho partilhado. No fundo, deixámos uma herança de inviabilidade, que faz da endémica resistência dos novos países à modernização e ao progresso a expressão visível da nossa culpa histórica. Depois e desgraçadamente, não soubemos sequer densificar laços de cooperação privilegiada, capazes de ligar os povos e culturas de língua portuguesa a uma mesma comunidade de desenvolvimento.
Por fim, a revolução prometeu desenvolver. E desenvolveu. Mas fê-lo, sobretudo, a partir do final da década de 80, com o inestimável contributo europeu. Antes disso, o PREC, confiante na dimensão salvífica das reservas de Salazar, destruiu a economia e o sistema financeiro. Logo a seguir, vieram os tempos da bancarrota e do FMI. Mas, com os muitos milhões de Bruxelas e um novo quadro interno na banca e nas empresas, a evolução foi inevitável. Hoje, já nada permite reconhecer o país atávico, cinzento e provinciano do antigo regime. Como, aliás, já quase nada lembra o país militante, ingénuo e leviano dos primeiros verões de liberdade. Foram 30 anos de caminho, cumprido passo a passo, para o bem e para o mal. Porém, precisamente porque é tempo demais para não questionar o sentido das coisas, a grande questão da nossa actualidade colectiva é a própria orientação que levamos. Portugal parece ir vivendo à deriva, sem definir estratégias e sem eleger desígnios. O que é, afinal, intrinsecamente incompatível com uma ideia de futuro. Os países e os povos precisam de saber para onde vão e porquê. Ora, nós, como país e como povo, não prosseguimos nada e não apontamos para nada.
Portanto, a par das inalienáveis conquistas de Abril, consolidadas sobretudo no plano político-formal, é patente que, no plano da obra, sobra alguma insatisfação. E esta remete-nos para algo que veio a revelar-se marcante nestes nossos 30 anos de vida pública: a constância dos protagonismos.
Com efeito, ressalvando o caso de algumas mortes e de alguns (poucos) afastamentos naturais, a generalidade daqueles que a actualidade de há 30 anos assumiu como protagonistas, assim continuam reconhecidos pela actualidade de hoje. São tantos que seria ciclópico nomeá-los, mas é seguro que os documentários evocativos da data, a exibir durante estes dias, nos trarão o registo dos principais. Paralelamente, ao lado destes que perduram como baluartes do regime, os outros poucos que surgem de novo têm a particularidade de nada melhorarem face aos anteriores (significativamente, a maioria foi, afinal, formatada nas jotas dos anos setenta e oitenta). Ou seja, nos protagonismos não há substituição, mas acumulação. E não há refrescamento, mas clonagem.
Por via disto, a vida pública tem vindo a degradar-se. Os mais antigos, senadores que fazem da arena política e do espaço mediático o seu senado, perderam viço, acomodaram-se, ganharam tiques. Os mais recentes, salvo excepções honrosas e marginais, nunca impressionaram. Mas, uns e outros, encontram-se na defesa da intangibilidade do seu estatuto e, prevenindo, blindam os universos partidários às investidas de quaisquer eventuais aventureiros.
Ora, quando está em causa a definição do caminho, a qualificação dos protagonismos é a primeira das prioridades. Dela depende a motivação colectiva e a perspectiva de novos níveis de participação política – é preciso pensar o país, fazer disso agenda e convocar os portugueses para essa imensa discussão.
Para quem há 30 anos era criança, não há, hoje, hesitação possível: sem a inerente rematerialização dos grandes compromissos de Abril, o sistema estiolará. E, daqui a 30 anos, faltará a memória, o sonho e o projecto.
Post Scriptum, em 25 de Abril de 2008 - Nunca fui cavaquista, mas isso jamais me impediu de seguir com atenção e respeito a acção de Cavaco Silva (e, muito menos, de valorizar o inegável contributo que deu ao desenvolvimento de Portugal, nos seus mandatos de Primeiro-Ministro).
Há exactamente dois anos, fui sensível à importância do que disse e à agenda de solidariedade que então firmou.
Hoje, rendi-me à inteligência de um discurso que, subtil, nos confrontou – a todos – com uma interpelação violentíssima: foi para isto??? Fizemos o 25 de Abril para que, 34 anos depois, a população se demitisse e alheasse da política com esta expressão intolerável?? Foi esta a democracia que prometemos??? É esta a democracia que queremos??
Só mesmo Francisco Louçã para, do alto do seu fanatismo sectário e míope, dizer que, pela primeira vez, o conteúdo do discurso do PR no 25 de Abril não trouxe qualquer mensagem política (!!!) (SIC-Notícias, em directo dos Passos Perdidos, no final da cerimónia)…
Poderia ter havido mensagem mais política?! Mais directa ao âmago de todas as questões?? Da vida partidária à qualidade da governação ou à densidade da democracia?...
Só mesmo Francisco Louçã para, do alto do seu fanatismo sectário e míope, dizer que, pela primeira vez, o conteúdo do discurso do PR no 25 de Abril não trouxe qualquer mensagem política (!!!) (SIC-Notícias, em directo dos Passos Perdidos, no final da cerimónia)…
Poderia ter havido mensagem mais política?! Mais directa ao âmago de todas as questões?? Da vida partidária à qualidade da governação ou à densidade da democracia?...
Até porque, na minha leitura, a inteligência deste discurso está também no seu enfoque. A juventude é aqui, no essencial, uma figura de estilo: uma metáfora, com alguns condimentos de hipérbole destinados a assegurar a ênfase retoricamente devida. No fundo, não é a juventude que está assim. É toda a população. A memória vivencial dos mais velhos não deve confundir-se com maior empenho, compromisso, interesse ou esperança. Infelizmente.
2 comentários:
"Onde estava no dia 25 de Abril de 1974?". Eu tinha dois anos e estava muito longe, tinha nascido e vivia noutro continente. Nos idos de sessenta, o meu pai, fartou-se das contas permanentes que tinha de dar à polícia e fez o que muitos fizeram, foi-se embora. Regressámos, já uma família de quatro pessoas, apenas em 1976. O meu pai sempre disse que esta era uma má terra para quem dizia muitas vezes que não e perguntava muitas vezes porquê. A minha memória de Portugal começa apenas por isso em 1976. E dela gostaria de falar um dia destes.
Concordo com esse "toque" na memória.
Sem memória não há vitalidade civilizacional ou só política.
Portugal é um país de refundações, de novos actos refundadores, sobretudo desde Alcácer Quibir, que nos mostrou a primeira grande contrariedade à expansão.
Portugal sem "expansão" é mais Europa "repliée" sobre as suas fronteiras, decadente de mitos, meramente proclamadora de uma racionalidade que se esgota no processo, e não tem "fim".
Desta forma, o 25 de Abril está hoje já ausente de memória.
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