Rumo à fichagem ou a saga dos "intolerable acts"
Dias depois da divulgação da notícia de que o fisco considerava a celebração festiva de um casamento uma "oportunidade tributária", estou mais e mais preocupado.
Não apenas pela prática instaurada, que abaixo qualificarei, mas pela indiferemça que ela suscita.
A perseguição sistemática dos registos de casamento e a organização de um questionário sobre os festejos de casamento para efeitos de controlo fiscal não é apenas ridícula, é intolerável. Uma festa de casamento, qualquer que seja o número de convidados ou a indumentária, não consubstancia um facto tributário. Uma coisa é controlar, aleatoriamente ou por sector, as empresas de "catering", os profissionais de fotografia, as casas de moda, as "gift shops", as garrafeiras e adegas. Uma coisa é, na multitude dos contribuintes possíveis, fiscalizar, por rotina ou por suspeita, as contas de um ou vários "casais por acaso recém-casados". Outra, totalmente diferente, é eleger o casamento - a dimensão festiva, eminentemente pessoal - numa "espécie" de facto tributário autónomo e próprio, aglutinador de uma série de "operações económicas" (para usar a expressão cúmplice de Francisco Louçã). Trata-se de uma inadmissível intromissão na mais privada esfera privada. Cada um casa se quiser, quando quiser e como quiser. Com festa ou sem festa, vestido ou despido, com água, vinho ou refresco. E o Estado, que nada tem a ver com as uniões de facto, com os nascimentos, baptizados ou novas formas de família, nem com os seus festejos - por maiores ou glamorosos que sejam -, também não há-de ter nada que ver com os matrimónios (clássicos ou vanguardistas).
O que tudo isto revela - e, por isso, se mostra incomensuravelmente grave - é uma enorme apetência pelo controlo social, pelos mecanismos de controlo social. O Governo - este governo em particular - replica e multiplica os exemplos de vontade de controlo da vida cidadã.
A rolo compressor fiscal continua em marcha. Mais preocupado com os detalhes da vida quotidiana do que com a larga face oculta da fuga. Os detalhes da vida quotidiana não dão apenas dinheiro, dão informação. Rumo à "fichagem".
5 comentários:
Denúncia oportuna e decisiva. Muito bem, Paulo!
Ficar indiferente é calar e calar é consentir. Caldo de cultura idóneo a novas investidas de um rolo compressor que ameaçará sempre mais e mais - na exacta medida do que lhe permitirem os nossos silêncios.
Resistir é sentir o carácter intolerável desta violência contra os direitos - e o Direito - e, no fundo, contra a liberdade. Resistir é exercer responsavelmente esta liberdade e defender o 'acquis' jurídico que suporta a democracia.
Gostei e subscrevo. Bem posto. Mas comento uma nota relativa à "face oculta da fuga". Para não sermos demagógicos teremos de reconhecer que do modo como a economia financeira está hoje organizada a nivel internacional, tal "fuga" é uma quase inevitabilidade. A grande finança são "estados" independentes dentro de estados simbólicos. E nestas condições fica a governança num dilema: se a hostiliza, ela faz as malas e vai praticar a arte da fuga para outras paragens, ficando quem governa a gerir o descontentamento gerado pelas consequências da saída desses fluxos do sistema; se a tolera, só pode ir buscar impostos a quem ainda não atingiu a dimensão para deixar de ser "controlável". Enfim...não é fácil, convenhamos !
Paulo: subscrevo sem hesitações. Dir-se-á que são exemplos mais ou menos anedóticos (os casamentos, os piercings, a ASAE, etc.). Mas o que verdadeiramente preocupa é que estas ideias só podem ter cabimento em mentes sem nenhum apego aos valores da liberdade. Pela minha parte há muito que estou elucidado.
Paulo, também eu partilho o repúdio total por estas medidas. Mas o que me preocupa mais , é como diz o Pedro Norton , o facto de estarmos perante pessoas que põem e dispõem dos cidadãos, sem que para isso tenham não só algum sentido do valor liberdade como pior do que isso, não têm sequer noção do que estão a fazer.Ninguém no seu perfeito juízo pode despudoradamente estabelecer regras dessas, a menos que tenha a ignorancia suficiente para estar convencido que está a fzer uma grande coisa. A ignorância no seu melhor! Infelizmente , já não surpreende.
Pessoalmente considero a familia (e o casamento que a constitui) como essencial. Temo que o alcance desta medida não seja apenas tributário mas atinja - ou pretenda atingir? - a própria institutição em si.
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