quarta-feira, 26 de março de 2008

Rumo à fichagem ou a saga dos "intolerable acts"

Dias depois da divulgação da notícia de que o fisco considerava a celebração festiva de um casamento uma "oportunidade tributária", estou mais e mais preocupado.
Não apenas pela prática instaurada, que abaixo qualificarei, mas pela indiferemça que ela suscita.
A perseguição sistemática dos registos de casamento e a organização de um questionário sobre os festejos de casamento para efeitos de controlo fiscal não é apenas ridícula, é intolerável. Uma festa de casamento, qualquer que seja o número de convidados ou a indumentária, não consubstancia um facto tributário. Uma coisa é controlar, aleatoriamente ou por sector, as empresas de "catering", os profissionais de fotografia, as casas de moda, as "gift shops", as garrafeiras e adegas. Uma coisa é, na multitude dos contribuintes possíveis, fiscalizar, por rotina ou por suspeita, as contas de um ou vários "casais por acaso recém-casados". Outra, totalmente diferente, é eleger o casamento - a dimensão festiva, eminentemente pessoal - numa "espécie" de facto tributário autónomo e próprio, aglutinador de uma série de "operações económicas" (para usar a expressão cúmplice de Francisco Louçã). Trata-se de uma inadmissível intromissão na mais privada esfera privada. Cada um casa se quiser, quando quiser e como quiser. Com festa ou sem festa, vestido ou despido, com água, vinho ou refresco. E o Estado, que nada tem a ver com as uniões de facto, com os nascimentos, baptizados ou novas formas de família, nem com os seus festejos - por maiores ou glamorosos que sejam -, também não há-de ter nada que ver com os matrimónios (clássicos ou vanguardistas).
O que tudo isto revela - e, por isso, se mostra incomensuravelmente grave - é uma enorme apetência pelo controlo social, pelos mecanismos de controlo social. O Governo - este governo em particular - replica e multiplica os exemplos de vontade de controlo da vida cidadã.
A rolo compressor fiscal continua em marcha. Mais preocupado com os detalhes da vida quotidiana do que com a larga face oculta da fuga. Os detalhes da vida quotidiana não dão apenas dinheiro, dão informação. Rumo à "fichagem".

5 comentários:

Sofia Galvão disse...

Denúncia oportuna e decisiva. Muito bem, Paulo!
Ficar indiferente é calar e calar é consentir. Caldo de cultura idóneo a novas investidas de um rolo compressor que ameaçará sempre mais e mais - na exacta medida do que lhe permitirem os nossos silêncios.
Resistir é sentir o carácter intolerável desta violência contra os direitos - e o Direito - e, no fundo, contra a liberdade. Resistir é exercer responsavelmente esta liberdade e defender o 'acquis' jurídico que suporta a democracia.

Manuel Rocha disse...

Gostei e subscrevo. Bem posto. Mas comento uma nota relativa à "face oculta da fuga". Para não sermos demagógicos teremos de reconhecer que do modo como a economia financeira está hoje organizada a nivel internacional, tal "fuga" é uma quase inevitabilidade. A grande finança são "estados" independentes dentro de estados simbólicos. E nestas condições fica a governança num dilema: se a hostiliza, ela faz as malas e vai praticar a arte da fuga para outras paragens, ficando quem governa a gerir o descontentamento gerado pelas consequências da saída desses fluxos do sistema; se a tolera, só pode ir buscar impostos a quem ainda não atingiu a dimensão para deixar de ser "controlável". Enfim...não é fácil, convenhamos !

Anónimo disse...

Paulo: subscrevo sem hesitações. Dir-se-á que são exemplos mais ou menos anedóticos (os casamentos, os piercings, a ASAE, etc.). Mas o que verdadeiramente preocupa é que estas ideias só podem ter cabimento em mentes sem nenhum apego aos valores da liberdade. Pela minha parte há muito que estou elucidado.

Helena Forjaz disse...

Paulo, também eu partilho o repúdio total por estas medidas. Mas o que me preocupa mais , é como diz o Pedro Norton , o facto de estarmos perante pessoas que põem e dispõem dos cidadãos, sem que para isso tenham não só algum sentido do valor liberdade como pior do que isso, não têm sequer noção do que estão a fazer.Ninguém no seu perfeito juízo pode despudoradamente estabelecer regras dessas, a menos que tenha a ignorancia suficiente para estar convencido que está a fzer uma grande coisa. A ignorância no seu melhor! Infelizmente , já não surpreende.

JP Guimarães disse...

Pessoalmente considero a familia (e o casamento que a constitui) como essencial. Temo que o alcance desta medida não seja apenas tributário mas atinja - ou pretenda atingir? - a própria institutição em si.