terça-feira, 11 de março de 2008

O Pêndulo de Leviathan

Há um consenso generalizado de que Alan Greenspan foi um dos melhores governadores do Sistema de Reserva Federal dos EUA. Estas avaliações levantam dúvidas, pois nunca se sabe o que teria acontecido no caso de o governador ter sido outro. Uma das dúvidas que se coloca, por exemplo, é se as taxas de juro não terão sido mantidas demasiadamente baixas, favorecendo o sobre-endividamento de algumas famílias, sobretudo das faixas de rendimento mais baixos. Uma outra dúvida prende-se com os efeitos da grande liberdade que Greenspan deixou aos mercados financeiros, uma vez que a ausência de controles suficientes poderá ter estado na origem da crise do “sub-prime”.

Esta última crítica é de fundo, dado que Greenspan tinha como filosofia de base a eliminação de muitas restrições aos mercados financeiros por forma a torná-los mais ágeis e por essa via tornar também a economia mais ágil. A filosofia económica de Greenspan aparece claramente nas primeiras páginas do seu excelente livro “A Era da Incerteza”. E aí se vê também as raízes do seu génio, as quais se prendem com uma enorme intuição sobre a forma como funcionam as economias de mercado desenvolvidas.

O livro começa com o 11 de Setembro, que apanhou Greenspan no ar, numa viagem entre Zurique e Washington. A história é contada de um modo muito interessante e revela a importância do Governador do Fed. O avião em que seguia teve de dar meia volta porque o espaço aéreo dos EUA e do Canadá foi encerrado, mas rapidamente Greenspan falou para a Casa Branca, pedindo transporte, aterrando no dia seguinte em Washington escoltado por dois caças.

Apesar dos planos de contingência terem sido imediatamente postos em prática por quem estava em Washington, a presença de Greenspan era importante, pois seria preciso decidir sobre as medidas a tomar para ajudar a economia a absorver, nem que parcialmente, o impacto do 11 de Setembro.

E qual foi o impacto? Foi isso que Greenspan ficou à espera para ver, como nos conta. A primeira coisa de que se apercebeu foi que impacto começou por ser sentido pelos sectores que dependiam em maior escala do transporte aéreo como, por exemplo, dos produtos frescos transportados de avião, dos supermercados e, claro, do turismo. Desde logo não ficou, diz ele, muito preocupado, pois esses sectores não são demasiadamente importantes. Assim, de imediato, nada fez. Todavia, começou a preparar o terreno para a eventualidade de ser necessário injectar dinheiro na economia, tendo conseguido chegar à conclusão do valor que deveria ser necessário, auscultando quem devia auscultar (o valor a que se chegou é parecido com o que Bush fez recentemente, isto é, 1% do PIB). Essa preparação era necessária, por causa do eventualmente lento processo político (foi depois de facto muito lento e a medida acabou por ser abandonada).

Este forma de actuação contrastava com a prática anterior em que o governador do Fed seguia de perto uma série de indicadores relacionados com a oferta monetária e a inflação, agindo em conformidade. Os valores ideias para esses indicadores são dados por modelos económicos complexos que procuram espelhar o que se passa na economia. Greenspan abandonou isso e, em vez de usar modelos complexos mas sempre limitados, passou a usar a informação disponível de uma forma mais flexível. Claro que antes teve de aumentar a quantidade de informação que recebia, assim como a transparência das decisões das principais instituições, incluindo as do próprio Fed.

Entretanto, Greenspan continuou a medir o pulso à economia norte-americana. O seu cargo é particularmente adaptado a isso, assim como o sistema do banco central americano. Trata-se de um sistema de 12 bancos espalhados em “pontos estratégicos” do território dos EUA que têm como uma das funções mais importantes auscultar o funcionamento dos mercados e as necessidades de crédito. Nada de preocupante se estava a passar, sendo que nesses dias a seguir ao atentado não se revelaram tendências para fecho de empresas ou aumento do desemprego.

Mas, para Greenspan, uma coisa mais importante de todas se estava a passar. Tratava-se do facto de que a economia norte-americana estava a responder bem às consequências do 11 de Setembro porque se tinha transformado numa economia muito mais flexível, com capacidade de se ajustar com menores dificuldades aos transtornos do mercado. O mesmo se passa agora com o impacto da subida do preço do petróleo. Essa maior flexibilidade foi uma consequência da política económica e monetária dos cerca de 18 anos que Greenspan esteve à frente da Reserva Federal, os quais foram dominados pela implementação de mecanismos de monitorização do funcionamento dos mercados económicos e financeiros e aumento da flexibilização dos mercados mais importantes, nomeadamente do trabalho. Parece estranho dizer isto sobre os EUA que são normalmente vistos como historicamente muito flexíveis, mas a verdade é que lá também há vários graus de flexibilidade.

O legado de Greenspan será porventura seguido por Bernanke e pouco mudará. Inclusivamente, como vimos, regressou-se à medida de descida de taxas de juro para aliviar a pressão dos maus resultados do sector financeiro sobre as bolsas de valores, assim como se seguiu a politica de injectar 1% do PIB na economia, para aumentar o consumo e assim indirectamente tentar reavivar a economia.

Estas duas medidas vão contra a ortodoxia da economia de mercado mais liberal de Friedman e da chamada escola de Chicago, mas são hoje bem aceites por todos, incluindo a revista Economist, que as apoiou, lembrando todavia os perigos do regresso da estagflação. Ora, essa aceitação generalizada deve-se em grande parte à acção de Greenspan à frente do Fed, tendo sido ele o responsável por mostrar que esse tipo de monitorização tem (ou melhor, teve) efeitos positivos.

Há já extensões evidentes deste novo quadro de análise macroeconómica que foram desde logo apreendidas pelo novo Presidente do FMI. Trata-se da mudança de orientações sobre a política orçamental, que agora já pode ser vista como uma forma de impulsionar economias com problemas de crescimento do consumo ou do investimento. Isto é, com políticas de gestão do lado da procura, esse lado tão demonizado durante as décadas mais recentes. Claro que não é uma receita ao alcance de todos, pois tem de haver uma base de peso da dívida pública e do défice razoável. E a mesma filosofia esteve também por trás da nacionalização do banco Northern Rock por Gordon Brown, uma acção impensável nos governos de Thatcher ou mesmo nos primeiros anos dos governos de Blair.

Só há uma parte de economia internacional que está fora desta nova moda. Trata-se da Eurolândia, que persiste numa política restritiva, com medo da inflação. Há quem diga que isso acontece porque o BCE está sob controlo do histórico medo alemão da inflação. Isso é apenas meia-verdade. Com efeito, o BCE mesmo sem baixar as taxas de juro – que apesar de tudo estão abaixo das da GB –, já fez muito pelo simples facto de existir. Imagine-se o que seria dos mercados financeiros europeus se tivessem de suportar o impacto da crise financeira dos EUA sem BCE? Seria uma grande confusão nas paridades bilaterais das moedas europeias, seguida de controlos de câmbios, de fluxos de capitais e de bens e serviços. Ou um possível regresso aos anos 1973-1983, entre a crise dos preços do petróleo e o dia em que Miterrand pôs o socialismo na gaveta.

Agora, a verdade é que o BCE está contra a corrente e isso é um aviso aos governos europeus que não poderão almejar ter uma política monetária mais simpática se não continuarem a fazer tudo para tornar a economia europeia mais flexível. Será que os eleitorados querem isso?

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu discordo do Pedro Lains.

A minha opinião é que a política do Fed durante o tempo de Greenspan foi um disparate, ao colocar as taxas de juro abaixo da inflação. O resultado evidente foi que os EUA passaram a ter uma taxa de poupança nula ou negativa.

E acho que a política do Fed de Bernanke tem sido catastrófica. Injetar mais dinheiro na economia só levará à estagflação. Inflação e mais inflação.

O BCE está a agir bem. A economia deve desenvolver-se na base de uma maior capacidade produtiva, não na base de uma inflação de consumo.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Obrigado pelo comentário que foi directo a um dos nervos do argumentário. Não discuto o que diz porque, como seguramente concordará, em economia, quando se desce a pormenores, o que interessa não são opiniões mas sim dados de base que não tenho à mão (nem perto, nem longe). Acrescentava talvez que não me preocuparia demasiadamente com a taxa de poupança interna (pois o dinheiro pode vir de fora) e mais com a inflação e com o défice externo. Haveria muito mais para dizer, todavia.