quarta-feira, 5 de março de 2008

Ler ou citar


Hoje vinha para o trabalho a ouvir a France Info e uma jornalista informava de um artigo que permitia, em poucas páginas, saber tudo o necessário sobre os grandes livros de 2007. De acordo com a jornalista, o artigo permitia-nos ser cultos sem ler. Este tipo de artigos ou livros não são novos. O que me chamou a atenção foi a jornalista utilizar a expressão culto em vez de parecer culto. A cultura é assim entendida como um conjunto de citações, tendo a mesma função das longas listas bibliográficas (que se consultaram mas não se leram) em muitas teses de doutoramento: conferir autoridade. Talvez parte da responsabilidade desta deturpação da cultura seja de atribuir a quem lhe retirou o sentido lúdico e a quem confunde ser culto com ter o monopólio da verdade. Uma citação parece, por vezes, valer mais que um argumento. Lemos para retirar poder e não prazer da leitura.

2 comentários:

Inez Dentinho disse...

Adriano Moreira costuma dizer que é filho da analfabeta mais culta que conheceu. Sua Mãe não sabia ler mas era uma mulher de cultura, com cultura, com memória vivida, sentida, digna de ser transmitida.
As Universidades medievais, desconhecendo o positivismo estanque das ciências do penúltimo século, veículavam mais facilmente a atitude e o conhecimento propícios à mente culta ao mesclarem o estudo cruzado da Música, da Filosofia, da Matemática, da Medicina, da Astrologia, da Teologia etc.
Não digo que o progresso seja redutor. A definição das disciplinas favorece a especialização. Mas parece-me que o fosso entre o saber e a sabedoria - anteriormente diminuto - se aprofundou.
Hoje, se vivermos com citações oportunas, garantimos porventura a sorte da cortiça nas águas turvas. Estamos cercados por esses sobreviventes e somos um pouco como eles ao sabermos duas frases sobre todos os assuntos, que não três.
Mas estar à tona não dá sentido pessoal nem serve a comunidade ou o devir.

Miguel Poiares Maduro disse...

Cara Inês
Totalmente de acordo mas não creio que a especialização e a interdisciplinariedade (não confundir com multi-disciplinariedade) sejam antitéticas. Infelizmente, no entanto, esse é um dos equivocos que domina a nossa educação.
O paradoxo é que vivemos num mundo crescentemente multi-disciplinar e cada vez somos menos interdisciplinares...
Miguel