terça-feira, 4 de março de 2008

Em defesa dos «cavalos»

Não resisto a comentar o «post» do Gonçalo sob a forma de outro «post». Julgo que uma declaração de interesses é de tal maneira óbvia que é desnecessária. Não tenho a pretensão de ser minimamente isento nesta matéria. Mas tenho a pretensão de ter pensado o suficiente sobre o assunto para ter opinião.
Vamos então aos pontos de divergência com o Gonçalo (que não me impedem de reconhecer a qualidade e o brilho da sua reflexão):
1 - Começo por uma precisão que não belisca o essencial da argumentação do Gonçalo. O modelo dos jornais «apolíticos» e mais «sensacionalistas» não é um fenómeno novo nem coincide com a emergência dos grandes grupos de media na segunda metade do século XX. A chamada «penny press» que aparece na Nova Iorque do início do século XIX tinha já todas as características que hoje costumamos associar à imprensa «tablóide».
2 - Onde o Gonçalo vê um continuo de «degradação» da imprensa (e dos media em geral) eu vejo uma coabitação permanente de modelos alternativos. Repito: não é verdade que a imprensa «tablóide» seja um fenómeno novo. Como não é verdade que não continuem a despontar projectos de comunicação social que se encaixam na perfeição no modelo «jeffersoniano» que o Gonçalo descreve com a nostalgia própria de quem fala de um tempo que já não volta. Vejamos o caso português. É verdade que a última década do século XX está ligada ao aparecimento de vários títulos de orientação «tabloidizante» (cito de cor o 24 horas, um pouco antes o CM, toda a imprensa cor-de-rosa, etc.). É verdade que nesse mesmo período emergem também modelos de programação televisiva que fazem apelo às emoções mais básicas dos públicos mais indiferenciados (os célebres «reality shows» são o exemplo mais frequentemente citados). Mas é também nesse período que são lançados entre nós jornais tão respeitados como o Público, rádios tão profissionais como a TSF ou canais de televisão tão insuspeitos como a SIC Notícias. Não vejo, sinceramente, que os factos sustentem a tese da «degradação» continuada. Vejo, para simplificar, dois modelos muito diferentes de projectos de comunicação social que têm co-existido historicamente sem que o sucesso de uns implique a morte de outros.
3 - A ideia de que os projectos de comunicação social não devem ser geridos como negócios porque ficam à mercê de sinistros interesses capitalistas também não é nova. Para não recuar ainda mais, cito Ben Bagdikian que desde há mais de 30 anos tem sido o grande defensor das teses de conspiração marxista sobre media. Seja como for, é aqui que estou mais frontalmente em desacordo com o Gonçalo. Essencialmente por três ordens de razões:
a) Porque um projecto de comunicação rentável é um projecto de comunicação independente. Que pode dar-se ao luxo de enfrentar governos, oposições mas também interesses económicos (e nem é preciso ir muito longe para encontrar bons exemplos para ilustrar este ponto). Ao contrário, os projectos de comunicação deficitários (ou financiados pelo Estado) têm uma natural tendência para a subserviência.
b) Porque acredito que o interesse económico, se bem entendido, reforça o estímulo para que um projecto de comunicação social seja verdadeiramente independente. O mercado português está cheio de bons exemplos de projectos sérios que o mercado recompensou e de cadáveres de projectos que nasceram ao serviço de interesses mais conjunturais e que o mercado acabou por rejeitar.
c) Finalmente porque o que interessa assegurar é, não tanto que cada projecto seja totalmente independente de per si, mas que num determinado mercado compitam projectos diferentes, com propósitos e interesses diferentes e conflituantes entre si. E quer-me parecer que, no mercado português, a diversidade tem aumentado e não diminuído.

E assim termino porque o «post» já vai longo. Agradeço ao Gonçalo o estimulante repto.

1 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Meu caro Pedro.
Agradecendo os elogios - que retribuo - e a oportunidade desta conversa, quero começar por dizer que, frente a pessoa tão experiente e tão letrada neste tema, fiquei francamente aliviado por ver que, de um modo geral, estávamos de acordo. Para que não fiquem dúvidas, porém, esclareço ainda um ou dois pontos.
Em primeiro lugar, nunca pretendi que o modelo dos jornais sensacionalistas fosse novo. Sem ser – repito – conhecedor da matéria, sei que não só os chamados "penny press" existem e proliferam desde o séc. XIX, mas também que, só no séc. XX, com o fenómeno das duas grandes guerras, a grande maioria dos jornais políticos perdeu o carácter excessivamente polémico de que se tinha revestido até então.
Estamos de acordo, portanto, nas vantagens daquilo a que chamaste “coabitação de modelos alternativos” e a que eu chamei “pluralidade dos meios de comunicação”, sendo que me parece que ambos entendemos que esta pluralidade deve existitr tanto de um ponto de vista formal (quanto à intenção dos seus promotores) como material (quanto às matérias e aos conteúdos que versam).
Consequentemente, também não defendi que os projectos de comunicação social não possam ser geridos como negócios ou detidos por grupos económicos (sobretudo, nunca me passou pela cabeça a possibilidade de uma apropriação dos meios de comunicação por parte do Estado!?). Ao contrário, frisei as vantagens de um financiamento repartido e diferenciado entre promotores, leitores e agentes económicos no que diz respeito à pluralidade dos meios de comunicação. O que defendo, justamente, é que essa relação seja equilibrada, a bem de todos. E é isso que julgo que hoje não acontece, o que exemplifiquei a partir dos jornais de distribuição gratuita.
Assim, não falei de uma “degradação continuada dos meios de comunicação social” – a expressão não é minha –, mas das consequências de uma cultura economicamente totalitária ao nível dos meios de comunicação, o que, do meu ponto de vista, é especialmente preocupante por duas razões principais: a) a actual dependência desiquilibrada (isto é, total) dos meios de comunicação relativamente a grupos económicos; b) a aparência política que os meios de comunicação conferem a essa realidade económica.
É por isso, Pedro, que eu também aqui estou contra este logro (estive tentado a dizer alcavala) do actual totalitarismo económico - que é tão marxista quanto liberal - e contra o qual precisamos, e muito, de meios de comunicação equilibradamente dependentes. Conta comigo, portanto, na defesa destes “cavalos”!