terça-feira, 18 de março de 2008

Dia Azur

Entre os dias de um meeting internacional de imobiliário e uma vaga num avião para regressar, abriu-se-me a oportunidade de um dia praticamente livre. Deixamos o Palais des Féstivals na Croisette por volta do meio-dia e meia e de olhos postos nas placas indicativas das direcções, acelerámos num Fiat sem GPS até St. Tropez.

O micro clima da Côte d’Azur é uma ilha solarenga e acolhedora rodeada de chuva, vento e temperaturas baixas. Há lugares sempre cruzados de mito na sua realidade. A beleza da paisagem na aproximação a St. Tropez a partir de Cannes sugeriu-nos uma paragem em Grimaud onde em sexta-feira de Quaresma uma salada serviu de almoço e de descanso numa esplanada exposta a sul. Passeio entre as ruas empedradas de Grimaud, visita às ruínas do castelo medieval no cimo do monte, algumas reflexões sobre a arquitectura do lugar: a sensação de estar num Paraíso. A sensação de estar num mundo eterno, que nunca mudará porque nunca precisará de mudar. A quietude que tranquiliza, que nos devolve a nós próprio, que, por isso, trás paz. Pergunto-me se seria da escala humana, se seria da noção de proximidade, ou se seria o conforto do corpo e do olhar em relação ao que toca e ao que vê? Seja o que for, há uma beleza indizível nos lugares que parecem terem sempre sido como são e que se presume nunca deixarão de ser o que são. Quando, por algum mistério, que não podemos compreender, reconstruímos na Terra uma imagem do Paraíso, uma paz segura, forte e duradoura se revela dentro de nós e então dizemos para nós próprios: “Et in Arcadia Ego”.
Descemos para St. Tropez, deixámos o carro logo à entrada no parque do porto e perdemo-nos pelas ruas deitando o olho ao comércio local entre as grandes marcas e os souvenirs de pechisbeque. Seguimos depois para a zona da praia e, junto ao Mediterrâneo, prolongámos o movimento do corpo até ao cemitério, pousado na meia encosta debruçada sobre o mar do meio. O imobilismo e o silêncio do cemitério, encarando o imobilismo e o silêncio do mar fechado, do mar da civilização! Não era a morte que por ali pairava, por entre as cabeceiras de pedra dos túmulos as quais, como ameias de um castelo, se sucediam coroando as vistas a estes dois viajantes acidentais.
Viajantes acidentais, eu e um velho amigo, cruzámo-nos, naquele princípio de tarde em St. Tropez, em frente ao Mare Nostrum com as memórias de centenas de vidas que terão, se Deus já lhes tiver dado essa glória, conhecido o Paraíso de que eu tinha acabado de ter apenas um vislumbre lá no alto de Grimaud entre as ruas empedradas e as trepadeiras que cobriam as fachadas das casas. Cruzámo-nos com os seus sorrisos estampados nos seus rostos, em fotografias que, os que os perderam, vão renovando com carinho e ternura e assim, também, de algum modo, imortalizando. É a eterna luta pela imortalidade, é a memória a vencer, o esquecimento, o sono e a morte.
Lemos palavras ridículas, as próprias fotografias, algumas, são ridículas, para nós que vimos de longe no tempo e no espaço e estamos longe daquela intimidade amorosa em que as palavras mais ternas e saudosas têm assento. Porém, parando e pensando, começamos as ver nisso uma intensidade amorosa difícil de recusar. Aqueles sorrisos parados, imóveis, retirados ao fluir da existência (a fotografia é sempre um sinal de morte) falam-nos, talvez, de uma interrupção, como se, noutro lugar, um dia os pudéssemos reencontrar devolvidos ao seu movimento. Terão sido bons, terão sido maus, perante a morte não há discursos morais. Cada homem é no mundo, e já fora dele, uma criação irrepetível, uma poderosa afirmação sem contrário, uma presença que transcende todo o discurso moral sobre a pessoa o qual não é mais do que o produto do medo e da perturbação que a presença do desconhecido em nós provoca, Como o riso é o medo da morte.
Gostei de passear entre os mortos. Senti-os, inesperadamente vivos, ali no cemitério de St. Tropez. Vidas colhidas em plena entrega e cheias de audácia, vidas absurdamente interrompidas por um acidente inexplicável, uma criança de nove anos — Dai-lhe Senhor o eterno descanso nos esplendores da luz perpétua. O que vale a vidinha, ali onde só importa o triunfo sobre a morte? Deram-lhes o mar para olhar, e a nós que ali passamos de modo imprevisto, um pedaço de tarde inesperado e improvável, que nos confortou a alma entre ameias de pedra feitas com as cabeceiras dos túmulos.
Regressámos em silêncio à vila, ouvindo o pio de um mocho que não descortinámos. Vimos o sol descer e alongar as sombras dos edifícios sobre as praças e sobre os outros edifícios. Vimos pequenos grupos a conversar. Tudo esteve calmo e tranquilo naquela tarde de sexta-feira de Quaresma sob o céu infinito em frente ao mar da Cote d’Azur.

9 comentários:

Anónimo disse...

Só em França e sobretudo no Sul. Eduardo Lourenço, que por aí vive, uma vez disse que o verdadeiro centro do Império romano tinha sido por essas bandas. É verdade e ainda hoje se colhem os frutos dessa longa história.

Anónimo disse...

Pedro:Por falar em Império romano,faço uma sugestão: a visita à Vila Cardílio - são as ruínas de uma casa de habitação/vila romana. Tem vários painéis de azulejos muito bem conservados,de grande delicadeza e beleza. Está muito bem conservado ainda o sistema hidráulico e de aquecimento de águas. Fico sempre a pensar como é que é possível que depois deste nível de desenvolvimento tivessemos vivido tantos séculos de trevas,em que o cúmulo da educação era gritar "água vai"! Para quem ainda se interessa pelo património nacional, deixo a indicação, fica apenas a 10 minutos da A1 ( saída Torres Novas, direcção Castelo Branco).

Anónimo disse...

Cara Sofia,
Fiquei com curiosidade sobre o que diz e irei um dia ver. Não quero fazer um concurso de ruínas romanas, mas a verdade é que quando vi isto:
http://www.avignon-et-provence.com/tourism/pont-du-gard/
pensei, na minha ignorância, que a parte de cima só podia ser um acrescento do século XVII. Mas não, tem tudo 2000 anos.

Anónimo disse...

Fui ver ( e não, não era a neve a caír). É mesmo uma ponte admirável. Não conheço a Provença, mas sei que é lilaz, penso que será alfazema, é? Quanto à Vila Cardílio não tem essa imponência, mas superou as minhas expectativas.

Anónimo disse...

O Lugar vale para os outros o que os olhos de quem o vê vê. E para o outro o esse Lugar vale o que for capaz de ver nas palavras de quem viu... O Pedro e a Sofia não viram as palavras do João.

Anónimo disse...

Um fala da morte, mas nas palavras ecoa a vida... Outros falam do tempo que corre, mas de pedras que são esqueletos onde nada mora.

Anónimo disse...

O João fala da morte que não é, e Pedro e Rocha falam da pedra que nada é...

Anónimo disse...

Lains e Sofia... "Retirai novos de velhos tesouros"!... Ordena o Livro Sagrado.

Anónimo disse...

Mais um belo texto , João-Luís; este cheio de uma poesia serenamente melancólica.
Há lugares mágicos.
Quando a beleza se junta à imutabilidade de um lugar temos a sensação de estar perto do que é Bom, e sentimo-nos bem.
Sempre foi assim.
Já no Evangelho, no relato da Transfiguração, S. Pedro diz "Como é bom estarmos aqui"...
JW