terça-feira, 18 de março de 2008

Quid est veritas?

Neste estranho mundo em que vivemos poderá parecer estranho que aqui vos venha falar da Páscoa. Mas é mesmo da Páscoa que venho falar, a partir da excessiva riqueza das leituras do Domingo de ramos, este ano recontado pelo evangelho de São Mateus.
Tudo se passa em torno da relação que Jesus nos exorta a estabelecer entre os dois reinos em que naturalmente existimos: o dos homens e o de Deus. A questão, porém, não está em escolher entre a soberania de um ou de outro – pois que ambos são bons –, mas em saber vivê-los de uma forma ordenada. Melhor: em saber ordená-los para a verdadeira vida.
É interessante notar, nesse sentido, como Mateus nos conta a história da prisão de Jesus. Tudo começa com a pergunta que Judas faz aos sumos sacerdotes: «Quanto me dareis se eu vo-lo entregar?» A resposta é conhecida: Trinta moedas de prata! Consumada a traição, os sumos sacerdotes – representantes do poder espiritual – entregam Jesus a Pilatos – representante do poder temporal –, o qual, apesar de o saber inocente, não vê nele nada a ganhar, pelo que prudentemente o entrega à morte.
No dia seguinte, já morto Jesus, tendo-se reunido os sumos sacerdotes com Pilatos, «disseram-lhe: “Senhor, lembrámo-nos de que aquele impostor disse, ainda em vida: ´Três dias depois hei-de ressuscitar.´ Por isso, ordena que o sepulcro seja guardado até ao terceiro dia, não venham os discípulos roubá-lo e dizer ao povo: ´Ressuscitou dos mortos.´ Pois seria a última impostura pior do que a primeira.” Pilatos respondeu-lhes: “Tendes guardas. Ide e guardai-o como entenderdes.” E eles foram pôr o sepulcro em segurança, selando a pedra e confiando-o à vigilância dos guardas.»
O sentido, portanto, é claro: sempre que, tal como Adão, decidimos desobedecer a Deus, erigindo a nossa vontade em absoluto e sujeitando tudo ao nosso próprio interesse, pervertemos a ordem natural das coisas, transformando-nos em meros guardiões da mentira e da morte.
Imediatamente contraposto a este exemplo de Judas, porém, aparece o de Jesus, que, a igual pergunta, no deserto (onde o diabo, mostrando-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória, tudo lhe prometeu se ele o adorasse), respondeu: «Vai-te Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a Ele servirás.» O reino de Deus, porém, é tão frágil como um grão de mostarda, o qual, para dar frutos, tem que morrer. Mas crescendo «cria grandes grandes ramos, de tal maneira que as aves do céu se podem aninhar sob a sua sombra.»
Jesus, portanto, é aquele homem que, como qualquer um de nós, sofrendo perante a mentira e a morte, reza, pedindo a Deus: «Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice.» Mas imediatamente acrescenta: «Não seja, porém, como eu quero, mas como Tu queres.» E prescindindo de todas as espadas deste mundo, submete-se à vontade de seu Pai, tornando próximo o reino de Deus pela livre entrega de si mesmo à morte para salvação de todos os homens, assim se revelando o guardião da verdade e da vida.
Estes dois exemplos são extremos. No entanto, poucas vezes, nas nossas vidas, os acontecimentos têm esta clareza de vida e de morte. Ao contrário: o mal aparece sempre como um bem e o bem surge frequentemente como um mal. A escolha, porém, tem que ser feita, já que, ultimamente, somos mortais. Aqui, portanto, somos colocados perante a radicalidade de uma escolha que envolve toda a nossa vida – a que foi, a que é e a que há-de ser!
A Páscoa, assim, é um convite para uma liberdade maior, que Jesus transporta do âmbito comunitário, ou familiar (como aparece no livro do Êxodo), para o coração de todos e de cada um dos homens. A questão, no fundo, é esta: que liberdade queremos nós? A liberdade do reino dos homens ou a liberdade do reino de Deus? E a verdade é que tantas vezes, à pergunta de Pilatos – «Qual destes homens quereis que vos solte? Barrabás, ou Jesus, chamado Cristo?» – respondemos como a multidão em fúria: «Barrabás! Barrabás!»
«Qual de nós te trairá, Senhor?» – perguntavam, perplexos, a Jesus os seus discípulos. «O que mete comigo a mão no prato, esse me entregará» – respondeu-lhes Jesus. Todos nós, na verdade, somos traidores, porquanto, tal como Judas, e embora sempre agindo por bem, na intimidade do nosso coração tantas vezes pomos a nós mesmos à frente de Deus e dos outros.
Ora, a escolha da primazia do reino dos homens traz consigo o problema que Pilatos, aceitando libertar Barrabás, imediatamente se põe: «Que hei de fazer, então, de Jesus Cristo?» E a solução é apenas uma: matá-lo! Assim absolutamente entregue ao reino dos homens, porém, ninguém mais é merecedor de confiança. Por isso, perante a multidão desordenada, há que lavar as mãos, «dizendo: “Estou inocente deste sangue. Isso é convosco.”»
Assim, se tantas vezes o que parece mais fácil é perguntar, como Pilatos: afinal, «o que é a verdade?», o facto é que deste modo transformamos a vida num inferno. Com esta pergunta, de facto, transformo a mim mesmo em absoluto e a tudo o resto em relativo: nada mais há para esperar; ninguém mais para confiar: a minha liberdade será então proporcional à escravidão dos outros e eu serei somente o guardião da mentira e da morte.
Mas eis que a Páscoa aí está para nos lembrar: que liberdade queremos nós? É uma pergunta para todos os dias.

1 comentários:

Sofia Galvão disse...

A celebração da Páscoa sempre foi - e no tempo de Jesus era-o marcadamente - uma súplica pela "liberdade definitiva". Assim seja, também hoje.