De quem é a culpa?
O Rui Tavares defende hoje no Público que o desemprego entre os licenciados é mais culpa do mercado do que das universidades. De acordo com a sua tese não é a Universidade que prepara gente que o mercado não quer mas o mercado que não aproveita essa gente! A justificação para este aparente paradoxo encontra-a Rui Tavares num artigo da Chronicle of Higher Education onde um "caçador de cabeças explicava em como não lhe interessava saber se a pessoa que procurava vinha de Gestão, Filosofia ou Física, mas antes saber se ela tinha adquirido as capacidades de raciocínio, disciplina mental, criatividade ou autonomia pretendidas". Pode então deduzir-se, de acordo com Rui Tavares, que a falta de emprego dos licenciados não deve ser atribuída ao curso específico em que se licenciaram (e às sua maiores ou menores saídas profissionais) mas aos maus critérios de selecção do nosso mercado. Curiosamente, não discordo da tese fundamental do Rui Tavares mas apenas da conclusão que dela retira. Talvez alguns se recordem que há algum tempo escrevi um post em que alertava precisamente para o excesso de ênfase que é colocado na instrumentalização dos cursos universitários às necessidades imediatas do mercado. O mercado muda demasiado depressa para que as universidades consigam produzir licenciados que correspondam às suas necessidades profissionais imediatas. O que as universidades têm de formar para o mercado (e é isso que está subjacente à afirmação do "caçador de cabeças") são licenciados capazes de se adaptar às constantes mudanças profissionais exigidas pelo mercado actual e susceptíveis de corresponder às suas crescentes exigências de criatividade, autonomia e responsabilidade. O erro de Rui Tavares está em presumir que é esse tipo de licenciado que as nossas universidades estão a formar. Na verdade o nosso modelo de ensino e organização universitária é concebido, ao contrário do que muitas vezes se diz, à luz do paradoxo "profissionalizante" e "curricular". Isto é assim por duas razões fundamentais. Por um lado, muitos cursos foram criados e concebidos precisamente para corresponder ao paradigma de formar pessoas para as necessidades profissionais actuais do mercado (o que acontece é que o mercado mudou e os cursos não). Por outro lado, a ênfase na estrutura curricular "totalitária", o modelo magistral de ensino e, no geral, o atraso pedagógico e metodológico que domina a maior parte das nossas licenciaturas (e que promove um modelo de licenciado oposto aquele que tanto eu como o Rui Tavares defendemos) é mais um produto das estruturas de poder existentes nas nossas universidades.
Dito isto, não nego que também existem problemas sérios no funcionamento do nosso mercado de emprego. Frequentemente as empresas não seleccionam os melhores e isso é possível porque o nosso mercado sofre, regularmente, de um problema semelhante ao do nosso sistema público: falta de meritocracia (que no mercado é assegurada por uma genuína concorrência o que, por sua vez, necessita de mecanismos de regulação e supervisão adequados e de um sistema de justiça e de um sistema fiscal que funcionem, de forma a prevenir distorções de concorrência). É por isso que também não se pode confundir a existência de um sector privado com a existência de um mercado….
9 comentários:
Concordo que o papel das universidades não é o de moldar licenciados à medida das empresas. Concordo que as Universidades estão várias décadas atrasadas pedagógica e metodologicamente. Também é verdade que nem sempre as empresa (e o Estado) escolham os melhores. Mas houve uma parte que eu não percebi bem:a da genuína concorrência no mercado, e as entidades reguladoras a funcionar cabalmente, mais uma justiça digna desse nome - esta parte não é Portugal, pois não?
Miguel,
Concordando com tudo, acrescentaria apenas que a universidade - pelo menos como eu ainda a imagino -, para além dessa relação com o mercado a partir da qual tem que evoluir e transformar-se, deve também ser - tem também que ser - o lugar daquele saber que lhe deu o nome: saber universal, que é capaz de dar sentido a todas as coisas a partir do lugar em que nos encontramos e que não é, por isso mesmo, instrumentalizável.
Os dois são fundamentais, como os head hunters lá por fora já perceberam e por cá - como bem dizes - ainda não.
Miguel: subscrevo integralmente o teu post. Mas ouso acrescentar-lhe um ponto. Nem só a universidade é para aqui chamada. Uma das razões pelas quais não existem verdadeiros mercado de emprego e cultura de meritocracia em Portugal (e portanto uma das razões pelas quais existe um tão grande desemprego entre os recém licenciados)é o facto de, em Portugal, os sindicatos representarem apenas os trabalhadores empregados e se demitirem de representar os trabalhadroes desempregados. A rigidez laboral (que só verdadeiramente interessa aos já empregados) tem custos elevados. Que não são apenas suportados pelo «grande capital» (como se diz em sindicalês) e pela economia em geral, mas também (e talvez mesmo sobretudo) pelos recém-licenciados. Mas esta, já se vê, é uma evidência que não interessa repetir por aí...
Rui Tavares escreve sobre estas «Capacidades desperdiçadas» tendo como confessado pretexto próximo um debate organizado, na Faculdade de Letras, por "um dos grupos que têm vindo a surgir para reagir contra o subemprego".
Ora, partilhando a apreensão geral relativamente ao subemprego, e apesar de não ter estado na Faculdade de Letras, sempre digo que ouvi, há dias, num qualquer programa de rádio, a entrevista de um líder de um destes grupos... E acabei horrorizada! O jovem subempregado, na casa dos seus 30 anos, queixava-se amargamente da situação injusta a que a sociedade o tinha votado, depois de um curso superior de comunicação social e, na essência, clamava por apoios públicos à garantia de um emprego - um "verdadeiro" emprego. No discurso do entrevistado, era patente que se apelava a um emprego estável e para a vida, protegido pelo quadro de uma legislação laboral que deveria permanecer rígida e inexpugnável à voracidade do mercado. Ou seja, este jovem subempregado parecia um velho, incapaz de perceber as mudanças de um mundo que é também seu, aspirando à sobrevivência de paradigmas irrecuperáveis. Ouvindo-o, percebi o drama: assim não haverá construção partilhada de soluções. Com o peso desta tralha ideológica, teremos um inevitável diálogo de surdos. Patético na exacta medida em que os que principais prejudicados serão, inexoravelmente, aqueles que, incapazes de reciclarem discurso e modelos, acabarão sem lugar numa sociedade crescentemente implacável com os inadaptados.
Não sei o que se passou na Faculdade de Letras, mas não li em Rui Tavares uma palavra de apreensão sobre este modo de estar e de ver. É que, para gente assim, não haverá mercado que valha. Nem com 'head hunters' americanos...
Obrigado pelos comentários: estou de acordo com os três.
Sofia: não, não é Portugal... este não é um gosto é um desgosto (para fazer a ligação ao thread...)
Gonçalo: Eu limitei-me à componente de ensino das universidades mas estou totalmente de acordo em que elas não se podem esgotar nisso. As universidades devem ser, igualmente, um centro de criação de massa crítica, incluindo do saber não aplicado que é, no entanto, instrumental a todas as aplicações da vida.
Pedro: lembras-me o primeiro artigo que publiquei. Estava no último ano da Faculdade de Direito e publiquei uma crítica da concertação social com base nas teorias da escolha pública. A tese fundamental era que a concertação social tem muitas virtudes mas só pode funcionar bem onde o processo político seja forte e capaz de representar os interesses que quer o "capital" quer o "trabalho" não representam. Nomeadamente, os interesses dos desempregados (em particular dos que procuram o primeiro emprego e como tal não estão inscritos nos sindicatos). O problema que identificas não devia ser tratado como uma questão opondo o capital ao trabalho ou a direita à esquerda. É, acima de tudo, um problema de representação de certos interesses no sistema político.
Subscrevo inteiramente as palavras da Sofia Galvão. Não aceito discursos misarabilistas como o citado. Até porque muitas vezes é feito por quem se recusa a saír da capital e da santa casa dos pais. Deixo aqui o meu testemunho pessoal,que por isso mesmo vale o que vale. Experimentem saír da capital, ir para outras paragens,onde a falta de recursos é grande, ganhem experiência profssional e de vida. Regressem apenas quando tiverem um currículo digno de nota. É claro que sentirão falta de muita coisa ( de livrarias, cinemas, teatros e exposições). Mas vai valer a pena o esforço. Não fiquem sentados à espera de um milagre, ou daquele primo da mulher do amigo do pai que até conhece o fulano de tal...façam a mala!
meus amigos, estamos todos de acordo em tudo, portanto alguma coisa se passa:
1) ou eu não fui tão completo quanto deveria
2) ou o limite de caracteres também não ajudou
bem, na verdade, aquela crónica começa por ser um antídoto à visão dominante das obrigações da universidade e que o miguel bem resumiu. como antídoto, não é o remédio todo.
o resto também foi bem resumido pelo miguel. passa por uma mudança de visão:
- das universidades, que não formam para a autonomia. é justíssimo o que o miguel disse. e um dos problemas do discurso dominante é que, ao querer que as universidades corram atrás do mercado, acabam por formar gente pouco preparada para as mutações do mercado. paradoxal, mas creio que todos concordámos nesse ponto.
- dos estudantes universitários. fazer um curso é bom para aprender, para crescer, para pensar, para uma série de coisas. mas um curso não garante uma vida. nem sequer uma vida profissional. quem o pensar está a enganar-se sobre a universidade e sobre a carreira também.
para já é tudo, mas o debate faz-me pensar que talvez seja bom voltar a isto na crónica do público. aceito contributos!
um abraço
Caro Rui,
Se eu fosse a ti preocupava-me com este consenso generalizado. Tens uma reputação a proteger! Não que surpreenda o nosso acordo no entanto. Já tinha suspeitas mas depois de ler o teu artigo sobre a política da língua de segunda-feira percebi que, afinal, não apenas és um liberal mas corres até o risco de ser apelidado de neo-liberal... (fica a provocação...).
um abraço
Miguel
Caro Miguel,
Eu não apenas sou um liberal (de esquerda) como corro o risco do pessoal perceber que sou um libertário!
Grande abraço a todos,
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