A cavalo dado não se olha o dente...
Lisboa, Praça de Espanha, oito e meia da manhã. Paro nos semáforos, vindo da autoestrada de Cascais. Como de costume, dois pobres desgraçados arrastam-se entre os carros exibindo as suas maleitas, enquanto quatro criaturas oferecem jornais de duas ou três marcas diferentes. Coisa estranha esta de nos oferecerem jornais, sobretudo quando parecem competir, no acesso às nossas janelas, com aqueles farrapos de homem que nos pedem uma moeda. É sobre esta oferta que aqui quero pensar.
A evolução dos livros para os jornais começou no século XVII, com a utilização sistemática da imprensa, tendo-se tornado definitiva com a revolução industrial que, a partir do século XIX, possibilitou a impressão e a distribuição massivas dos jornais, que se tornaram num meio de comunicação fundamental da vida social e política das comunidades.
É natural, neste sentido, que algumas pessoas, ou grupos de pessoas, se tenham tornado proprietárias e/ou administradoras de jornais, na tentativa de influenciar a vida social e política das comunidades. Os leitores, porém, sabiam-no: sabiam quem eram os donos dos jornais e sabiam quais eram os seus objectivos, dos quais podiam, inclusivamente, discordar. A pluralidade de jornais, além disso, garantia a credibilidade das notícias, de algum modo chancelada por um suposto compromisso dos jornalistas com a verdade.
O custo dos jornais, assim, era suportado pelos seus donos – que queriam informar a comunidade dos factos sociais e políticos a partir do seu próprio ponto de vista –, e pelos leitores – que queriam ser informados desses factos. A lógica, portanto, era a da participação, já que era através dos jornais que ambos participavam na vida social e política das comunidades.
Um terceiro elemento se introduziu, porém, no financiamento dos jornais: os agentes económicos, que neles viram um meio óptimo para anunciar os seus produtos. Estes anúncios tornaram-se cada vez mais importantes, de tal maneira que, no século XIX, a partir da década de 40, começaram a surgir agências de comunicação cuja principal tarefa era justamente encontrar anunciantes para os jornais, a partir do que passaram para a produção eficaz dos respectivos anúncios.
Ora, esta entrada dos jornais no mundo dos negócios deu-lhes, num primeiro momento, a possibilidade de se auto-sustentarem, garantindo a possibilidade real de um maior número de pessoas poderem, por esta via, influenciar a vida social e política das suas comunidades. Com efeito, pequenos grupos de pessoas podiam agora associar-se e criar um jornal, deste modo contribuindo para o esclarecimento da realidade quotidiana.
O que aconteceu, porém, foi que os jornais se tornaram progressivamente dependentes dos agentes económicos, segundo uma lógica que, aliás, se aplica a todos os outros meios de comunicação, cuja propriedade se encontra hoje nas mãos de grandes grupos económicos, que não sabemos quem são, nem que objectivos perseguem. É por isso que, sob a aparência do mesmo, os jornais são hoje essencialmente diferentes.
Em primeiro lugar, porque os jornais – numa lógica que, repito, se estende a todos os outros meios de comunicação –, não visam hoje a participação na vida social e política das comunidades, mas o negócio. Os grandes grupos económicos, de facto, só secundariamente se interessam pelos países e pelas ideologias, visando directamente o lucro: o seu objectivo não é informar, mas vender. Isto não quer dizer que os jornais sejam um bom negócio. Ao contrário: em si mesmos, eles são um péssimo negócio. São, no entanto, um poderoso meio de comunicação, sendo que estes grandes grupos económicos nunca quiseram vender jornais – mas vender (muito lato sensu) através dos jornais.
Daqui decorre, em segundo lugar, a desvalorização de toda a informação social e política e, com ela, a desvalorização de todos os jornais. Assim se percebe que nos dêem jornais nos semáforos, ou que nos ofereçam tudo e mais alguma coisa na compra de um qualquer jornal, desde caixas de ferramentas à colecção de música do maestro Vitorino de Ameida! O facto é que o jornal, em si mesmo, não tem valor e as suas notícias (exceptuando as económicas) são secundárias. O que importa são os anúncios, razão pela qual já existem meios de comunicação que não têm outra função que não seja anunciar os produtos dos agentes económicos – sem notícias, que é para não maçar.
Em terceiro lugar, e juntamente com isto, dá-se uma mudança de natureza do discurso, que já não se quer racional mas emotivamente persuasivo. A sua função é promover a adesão não a um grupo de pessoas e de ideias, mas a um conjunto de produtos e serviços, através de uma linguagem de forte cariz sexual que, por meio de imagens apelativas do desejo, não quer dizer a realidade, mas substituí-la.
A falsa aparência política deste mundo quase exclusivamente económico, por último, favoreve um clima generalizado de indiferença moral. A velha máxima dos cépticos segundo a qual a verdade não existe ou, se existe, não pode conhecer-se, é instintivamente abraçada pelos indivíduos auto-centrados desta nova sociedade. Tudo se resume, no fundo, a uma questão de poder. O fim da actividade política não é, portanto, o bem comum, mas a participação individual nesse poder, que é essencialmente económico: o cidadão foi reduzido a um mero consumidor.
Poderão achar exagerado, mas os sinais estão todos lá. E o problema não se resume aos jornais. É geral: está em todos os meios de comunicação e está em cada um de nós. A lógica, aliás, é a mesma: a da imposição! A televisão entra nas nossas casas e os jornais nos nossos carros na mesmíssima medida em que os agentes económicos invadem a esfera política. Nós, porém, nem nos mexemos. Dão-nos, sem termos sequer que pedir, tudo aquilo de que precisamos.
Ora, se bem diz o povo que a cavalo dado não se olha o dente, a história do povo de Tróia adverte-nos para o perigo de levarmos estes presentes para dentro dos nossos próprios muros. Sob esta falsa aparência democrática, de facto, e antes que seja tarde, faremos bem em perguntarmo-nos: quem é que garante, hoje, a pluralidade da opinião política e a liberdade de expressão?
5 comentários:
Pois...
O exercicio da liberdade é antes de mais a capacidade de apreender o Mundo com sentido critico. Mas essa atitude supõe a posse de "armas" que não se adquirem nos "mercados" convencionais - familia e escola. Enquanto isso as metamorfoses do capitalismo revelam-se sempre e cada vez mais capazes de condicionar inclusivé o sentido de liberdade que nos move, como fica bem expresso neste excelente texto.
Há um sentido de recusa que importa cultivar. Sem ele somos apenas marionetas nas mãos do sistema cujas mordomias nos seduzem e mantêm "livremente" prisioneiros de propósitos alheios.
Meu caro Manuel Rocha.
Agradeço os seus comentários, que indiciam alguma sintonia de opiniões, o que é sempre agradável verificar.
Só não concordo inteiramente que as "armas" necessárias à liberdade não se adquiram também na família e na escola.
Quanto ao resto, fui visitar o seu site, o bolinas, de que gostei muito. Parabéns.
Caro Gonçalo,
No espaço necessariamente limitado do comentário a ideia que pretendia não passou como gostaria..;( vejamos se é desta.
Formatados como estamos pelas dinâmicas do consumo que vão desde o comer ao vestir ou mesmo à cultura, é dificil à familia "média" ou à escola "média" romper esse ciclo de desinformação, bem ilustrada pelos "jornais" que bem refere. A "arma" da capacidade de questionar o que nos é proposto para além de critérios de "utilidade" e preço, é rara... ou então obsoleta...
Obrigado pelo cumprimento, naturalmente retribuido :))
Concordo com o Gonçalo Moita e na nefasta influência que os péssimos conteúdos-lixo emitidos pelos Mass-Media nos ultimos anos têem tido, particularmente sobre a juventude (o futuro dum país!).
Sim, os Media são negócio, certamente, mas se a ideia é ganhar dinheiro sem mais, a droga e a prostituição dá mais dinheiro, então vamos esperar o pior cenário e, para nossa desgraça, que se concretizem certas coisas, como aquilo que num editorial do Diario de Notícias aqui há uns anos ( era a propósito da compra da TVI, então ainda ligada à Igreja, por dinheiros da droga, isto por eventuais suspeitas da associação da Media Capital a um grupo empresarial colombiano) que dizia que se os traficantes de droga principiassem a comprar jornais, em breve as investigações jornalísticas sobre o tema iriam acabar, ou então passarem a ter outros ângulos mais simpáticos de focagem e abordagem... Espero estar a ser pessimista.
Quanto aos jornais ditos "gratuitos", creio serem bem caros, pois nós paga-mo-los e bematravés da publicidade -caríssima-inserida, e que depois se incorpora no preço final do telemóvel, detergente ou iogurte lá anunciado que nós depois compramos.
Com os melhores cumprimentos,
CCInez
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