segunda-feira, 3 de março de 2008

O lado negro


Dilawar estava no sítio errado à hora errada. Por força disso, foi detido, barbaramente torturado e morreu. Assassinado pelo exército norte-americano.

Este é o terrível pretexto de “Taxi to the dark side”, documentário realizado por Alex Gibney, vencedor do Óscar 2008, que a RTP1 exibiu no passado fim-de-semana.
A quem não viu, recomendo vivamente a compra ou o aluguer do DVD. É importante ver. Porque é importante perceber o (lado do) mundo em que vivemos e a imensa fragilidade em que assentam os seus postulados mais fundamentais.
“Taxi to the dark side” é um testemunho arrepiante da tortura e do abuso de poder. Também da manipulação de emoções primárias e da sua metódica instrumentalização. Pior, um testemunho da violência convertida em razão de Estado.
Ao sabor de algumas histórias concretas e de alguns personagens concretos, Abu Ghraib, Bagram e Guantanamo surgem como passos de um roteiro que nos envergonha. Porque envergonha a cultura e a civilização ocidentais.

Aliás, o que impressiona e interpela é exactamente isso. Nos Estados Unidos da América, em pleno século XXI, mais de duzentos anos depois de os pais fundadores terem definido as bases da moderna democracia liberal e do ‘due process of law’, concebe-se um portentoso edifício jurídico tendente a justificar a mais absoluta iniquidade. Milhares de detidos sem julgamento, quase todos selvaticamente torturados, inúmeros mortos… mas não há ilícito – Alberto Gonzalez e John Yoo, sob a batuta de Dick Cheney e George Bush, asseguraram a inaplicabilidade da Convenção de Genebra. Portanto, para os senhores da guerra, os factos são permitidos porque justificados – com a única excepção dos “actos extremos” (seja lá isso o que for, porque é manifesto que ninguém está especialmente interessado em densificar o conceito).

Neste quadro, a verdade é que 35% dos americanos parece achar a tortura "aceitável em certas circunstâncias” (!!). Bush, o presidente democraticamente eleito, considera que está tudo bem e, quando lhe opõem razões relativas à defesa da dignidade humana, mostra-se tranquilo, concluindo que a própria noção de dignidade humana é, afinal, muito vaga… Entretanto, os tribunais recusam massivamente os pedidos de “habeas corpus”. E os jovens militares, decerto seres normais até então, uma vez enviados para estes teatros de crueldade, logo se transformam nos seus mais disciplinados e irrepreensíveis intérpretes.

“Taxi to the dark side” revela-nos um cenário de verdadeiro horror. Pelos excessos, responderam meia dúzia de soldados – pobres coitados nesta teia de protecções e silêncios cúmplices. Não há oficiais condenados. Pelo contrário, haverá mesmo promoções impressivas, como é o caso da Capitão Caroline Wood, principal mentora dos crimes de Abu Ghraib.

No fim, fica-nos a certeza de que Dilawar poderia ser qualquer um de nós. Bastaria que estivéssemos no sítio errado em hora errada, à mercê de um batalhão americano ou de um batalhão local amigo dos EUA...
Por isso, “Taxi to the dark side” é um poderoso apelo à indignação. Uma indignação construtiva, de olhos postos na esperança que radica nos valores da dignidade humana, da liberdade, da democracia e do Estado de Direito.

Passo a passo, sem demissões, poderemos fazer o caminho. Aliás, ele vai-se fazendo. Mas é preciso não ignorar, não calar, não virar as costas – a grandeza moral da civilização ocidental joga-se nessa opção.
Temos um ‘acquis’ político-cultural substancialmente frágil e ainda incapaz de prescindir de nós.

1 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Sofia,
O que, do meu ponto de vista, é terrível, é que se pensarmos nas atrocidades recentemente cometidas por um Estado contra um determinado "tipo" de pessoas (índios, boers, judeus, ciganos, polacos, japoneses, alemães, taiwanianos (?), tibetanos, ruandeses, darfurianos, dissidentes russos, dissidentes chineses, anarquistas, comunistas, homossexuais, etc. - aos quais se juntam agora os terroristas!), vemos que, para além do facto de serem muitas - mesmo muitas! -, há uma diferença fundamental entre elas, nomeadamente o facto de umas serem levadas a cabo por países ditatoriais e outras por países democráticos.
Neste último caso, de facto, acontece que esses actos, absolutamente desumanos, para serem praticados, necessitam a colaboração - activa ou passiva, intencional ou manipulada - de toda a população. Foi assim com os índios ou com os japoneses, nos Estados Unidos; foi assim com os Boers, na África do Sul; foi assim com os judeus, na Alemanha; e assim é com os terroristas, na Europa e nos Estados Unidos.
É bom não esquecermos, porém, esta nossa diferença civilizacional: ao contrário da China, de muitos países em África, na Ásia e no médio Oriente, nós, "cidadãos ocidentais", estamos obrigados, ao nível da consciência, pelo que fazem os nosos países, isto é: somos responsáveis, para o bem e para o mal! E "isto" - que ainda é indefinido mas já está em marcha - é inaceitável!