sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

O Rei de Fora

Rui Ramos é porventura um dos mais importantes e mais completos historiadores portugueses actualmente em plena actividade. Para mim é-o seguramente. As razões da qualidade do trabalho de Ramos prendem-se com a sua inteligência e grande erudição. Quem o conhece sabe que ele “leu tudo” e sobre tudo tem algo a dizer de importante, inovador, e quase sempre pontuado por algum humor. Mas tem ainda uma outra qualidade, quando escreve bons livros. Trata-se do facto de não misturar as suas interpretações históricas com as suas opções ideológicas.

A sua área de maior especialização é a história política nacional do século balizado entre o fim das guerras liberais e a consolidação do Estado Novo, entre, digamos, 1834 e 1936. É importante ser-se um especialista de todo este século, pois só assim se conseguem perceber os momentos mais importantes da história política portuguesa contemporânea. Só com essa longa perspectiva se consegue perceber, de facto, a Monarquia Constitucional, a República e o Estado Novo. Os historiadores que se concentram apenas numa dessas épocas não têm capacidade suficiente para se pronunciarem sobre as outras, pois as conclusões não são obviamente extrapoláveis. Esta verdade já há muito que é usada na história económica e Ramos é dos poucos que a usa também na história política do país. Pode saber-se muito sobre os meandros políticos da monarquia, mas, se não se conhece bem os da República ou do Estado Novo, não se pode ter uma perspectiva fundamentada do período contemporâneo nacional.

Ramos contribuiu de forma definitiva para uma melhor compreensão do curso da História nacional entre 1834 e 1936. Essas décadas são muitas vezes tidas como o palco da gradual implantação do liberalismo e da republicanização do País. Esta teria ganho fôlego com a “revolução” de 1910, para depois morrer nas mãos da ditadura quase-fascista de Salazar. Mas as coisas devem ser vistas de outra forma. A implantação do liberalismo começou de verdade com fim das guerras liberais de 1832-1834, mas os passos que se deram depois foram lentos e nem sempre em ascensão para o governo da república, isto é, para o governo do povo. Ao longo do século em causa, a história política do País foi palco de uma grande instabilidade resultante das disputas entre grupos políticos, cuja identidade não se viria a definir até ao fim da Monarquia. O facto de os agrupamentos políticos se terem mantido mutáveis e indefinidos tornou as lutas entre eles particularmente acesas e permitiu o florescimento de movimentos radicais.

Um dos movimentos radicais que surgiu na Monarquia foi precisamente aquele que viria a solidificar-se no Partido Republicano. Essa força decorria claramente das fraquezas da Monarquia. Mas deve ter-se em consideração que as fraquezas da Monarquia não decorriam da inépcia dos políticos da situação ou de uma especial propensão para a corrupção e para a falta de interesse nos destinos da Nação. Para compreender correctamente essas fraquezas, é preciso compreender o País e ter presente um quadro mais geral, dado pelas dificuldades inerentes ao atraso económico e ao enorme esforço de modernização que o século do liberalismo económico europeu de certa forma permitiu e potenciou.

Rui Ramos ainda não tinha escrito a sua obra mais importante. Há uns anos publicou o volume VII, relativo ao período entre 1890 e 1926, da História de Portugal organizada por José Mattoso, o qual contém muitas novidades interpretativas e algumas pistas importantes, mas não aguenta uma leitura seguida. Depois, Ramos publicou uma biografia de João Franco, que é um trabalho de síntese e um sub-produto da sua obra anterior. Também publicou um livro com algumas das suas crónicas de jornal (do “Independente” ou da “Atlântico”), mas são textos dirigidos a públicos ideologicamente comprometidos e menos baseados em argumentação sólida ou pesquisa fundamentada.

A bibliografia que acaba de sair do rei D. Carlos pode ser a primeira obra definitiva do autor. Ponho isto no condicional pois ainda só li uma parte. Todavia, as primeiras 100 páginas têm já tudo do que faz um excelente livro. E é bom falar desde já da obra, antes de a acabar de ler, pois neste momento pode fazer-se uma leitura sem saber o desfecho trágico da história deste rei. Recomenda-se aliás esse exercício a todos que queiram melhor compreender D. Carlos, pois muitos fazem interpretações abusivas baseadas em interpretações do que veio a acontecer. D. Carlos nasceu, cresceu, foi educado e viveu sem saber que iria ser morto e que a monarquia iria acabar. Esta constatação de facto tem um reverso menos lembrado: o Rei e o seu filho foram mortos não pelo que fizeram, nem porque a monarquia tinha um fim à vista, mas sim porque um grupo de tresloucados assassinos assim o quis.

Os historiadores mais empenhados ideologicamente parecem querer dizer, à Esquerda, que a monarquia portuguesa só podia ter acabado na República e, à Direita, que a República só podia ter acabado no Estado Novo. Quem conhece bem todo este período sabe que isso não é necessariamente verdade. A Monarquia Constitucional tinha dentro dela capacidade de se reformar, tendo inclusivamente sofrido ao longo da sua longa vida outras crises graves que conseguiu ultrapassar. A República, na sua vida quase toda ela desastrosa, estava de melhor saúde nas vésperas do golpe de 28 de Maio de 1926.

Dito isto, não se pode negar que o nível de animosidade da sociedade portuguesa, liderada pelos políticos da oposição e pelos publicistas, estava a subir exponencialmente no fim daqueles regimes e que isso ajudou às respectivas quedas. Nos nossos dias também vemos isso, mas, felizmente, os actuais publicistas não têm tanto efeito, pois a Democracia é um regime mais consolidado do que os anteriores. Mas esses publicistas deveriam pensar nesta comparação. Curiosamente, Rui Ramos, que é um deles também, evita o tom dos que nunca vêm nada de bom no que se passa no nosso país. Porventura porque sabe avaliar o que é que esses textos dramáticos de fim-do-mundo representaram para a vida política nacional.

Duas palavras finais sobre a figura de D. Carlos que aparece neste livro: ele foi um Rei obviamente culto, ligado à esquerda moderada e, acima de tudo, ligado ao estrangeiro e cosmopolita. Pertenceu a um pequeno grupo iluminado que inclusivamente chegou aos nossos dias na forma de uma “esquerda nobre”, não necessariamente de sangue, que podemos ainda encontrar envolvida na actividade politica, no fim do marcelismo e a seguir a 1974, próxima de Mário Soares ou de Sá Carneiro e Pinto Balsemão. O que os distingue não é serem republicanos ou monárquicos mas sim verem com maior ou menor discernimento a forma como este país funciona.

2 comentários:

Anónimo disse...

O historiador Ramos no seu livro até podia ter forçado um pouco a nota, como soi dizer-se, e dizer que o Rei e Chefe de Estado, além de "moderno e de esquerda" ( já que cultos só os que forem de esquerda, claro) até era também... republicano, LOL.

Entretanto, antes da "ditadura" do 28 de Maio, o facto é que o fim da "ditadura" da Ia Républica, imposta antidemocraticamente pelo assassinato e pela força das armas, porquanto pelo voto e democraticamente jamais o seria (o Partido republicano valia só 7 por cento) foi caracterizado pela pré-bancarrota, a prová-lo está célebre penhora de um navio de guerra como meio de garantia de um pagamento internacional...

Com os melhs. cumprimentos,
CCInez

Anónimo disse...

Desculpe lá o mau jeito mas se vcê e o Sr. Ramos doutos e sapientes acham que o regicidio foi obra de um grupo de tresloucados então carissimos ou que reputo de quase definitiva indigência intelectual da "intelligentsia" verfica-se e confirma-se. O próprio Ramos nas suas investigações deu à luz provas concludentes, que se tratou de um assassinato político ( sabem o que é isso? ) e jamais de obra de tresloucados. E se eu chamasse ao Rei um tresloucado por recusar maior segurança e protecção sua e da sua família? Mas para que conste o Rei Carlos recusou tais coisas também por opção política.