terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

"Expiação" até mais não

Há uns dias - talvez demasiados, mas tenho andado a fazer pesca submarina em busca de ideias decentes - João Pereira Coutinho alertava para o facto de a primeira meia hora de "Expiação", de Joe Wright, ser extraordinária, e depois o filme se afundar como um submarino germânico.
Tinha razão. O primeiro acto da fita não desmerece as passagens socialmente mais maliciosas de Jane Austen, o prenúncio trágico das irmãs Bronte e - porque não - os equívocos com bilhete de metro para o purgatório de Graham Greene. Há ambiente, incandescência na contenção, um fresco de temas mentais, música das almas - que se aproximam para nunca mais se encontrarem, como no "Retrato de Jennie" do pós-romântico William Dieterle - e um trabalho sobre o tempo que define o que o tempo é: tangível, viscoso como a pele das serpentes, infinitamente subjectivo.
Há mesmo uma das melhores cenas de sexo dos últimos anos - e não, não está em "Shortbus" de John Cameron Mitchell (o melhor "self made blow job", talvez), no "Ken Park" de Larry Park (a não ser que se goste de publicidade com meninas de 17 anos que parecem ter nove, feitos ontem de madrugada), nem mesmo no "9 Songs" de Michael Winterbottom (a melhor "queca"? Eventualmente).
Antes que este texto perca toda a lisura dos seus objectivos, convém referir que Pereira Coutinho é um bocadinho injustinho com Anthony Minghella, como o são todos os críticos e observadores com mais de 2000 livros na biblioteca (o número tem, evidentemente, rigor científico). O homem é um valente chato - e presunçoso, que são os chatos da pior espécie - quando se toma pela reencarnação de David Lean com dry bourbon e um twist de limão, como se pode (des)apreciar nos flashforwards de "O Paciente Inglês" (já não há pachorra para a Juliette Binoche a fazer caretas de adolescente deslumbrada) ou no epílogo de "Cold Mountain", com corvos, neve e todo o "mambo jumbo" holístico da praxe.
Mas quando Minghella abandona as cópias pirata de "Doutor Jivago" e "A Filha de Ryan" e se concentra no humanismo outonal, por vezes sombrio, do Lean da primeira fase britânica ("In Which We Serve", "Oliver Twist", "Brief Encounter") ou no abrasivo segundo acto de "Lawrence da Arábia" acerta, como acertou com "Truly Madly, Deeply" (que desconfio Coutinho não ter visto) e as sequências do deserto de "O Paciente": se excluirmos o próprio Lean, Chris Marker, Nicholas Ray e Claire Denis, quem filmou até hoje melhor o deserto do que Minghella?

Regressando à nossa "Expiação": sendo certo que dois terços do filme são papa virtuosa e emocionalmente opaca, não há hoje nenhum realizador português (alguma vez houve?) capaz de oferecer uma primeira parte tão deleitada e tão justa como os trinta minutos inaugurais desta fita de enganos irrecuperáveis. É por essa régua que nos devemos medir, é essa aspiração que devemos exigir (mesmo aos que são suficientemente cegos, mas insuficientemente borgeseanos, para não reconhecer essa aspiração mesmo que ela lhes caísse em cima vinda do topo de um prédio com dez andares). Já se sabe que a ruminância da mediocridade nunca pára.


2 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Então Pedro, e as imagens? Um post de cinema sem imagens é, para que se toquem os extremos de uma brejeira analogia, como um homem casado sem flores.
A leitura é emocionante e densa,mas o leitor tem o direito de descansar os olhos na Keira Knightley ou mesmo deitar-se inquieto nas areias do Bitter Victory que referes. Isto de seres só guionista, sem te atreveres à realização...
Ah, concordo 90% contigo, os 10% de discordância vão integrais e irrespeitosos para o Anthony Minghella. Ainda me falta 5 anos, 6meses e alguns dias para atingir aquela idade em que se diz alcançarmos o expoente da tolerância sem perda de lucidez. Nessa altura farei terapêutica revisão do "Paciente Inglês".

Miguel Poiares Maduro disse...

Já aqui escrevi algo posítivo sobre "Expiação" (a propósito de outro filme/adaptação, quanto a mim superior: The Assassination of Jesse James...) mas venho confessar-me...: é que Expiação é um dos raros filmes em que à medida que o vou recordando vão aumentando os defeitos que vejo nele. Sobretudo, quando me lembro dele quase só me vem à memória um anúncio de perfume... Serei só eu?Dito isto, lá que tem uma das melhores cenas de sexo dos últimos anos tem!! E isto sem se ver sexo (ou talvez por isto mesmo: como me recorda uma outra fantástica cena de sexo: no Último Imperador do Bertolucci).
abraço
miguel