As Ideologias, a Questão Nacional, os Partidos Políticos e Portugal (III)
Quero começar este terceiro acto da minha declaração de princípios, dedicado aos partidos políticos, por um pequeno esclarecimento metodológico, ou processual. Tenho assumido, neste pequeno discurso, aquilo a que se chama, desde Platão (República, II), o princípio antropológico da constituição das sociedades (por oposição aos princípios teológico e cosmológico), segundo o qual as sociedades humanas devem organizar-se a partir da estrutura essencial do ser humano. Essa estrutura, também aqui aceite conforme foi claramente expressa desde Aristóteles (no tratado Da Alma, na Política, nas Éticas, na Retórica...), é composta por três elementos distintamente permanentes no ser humano (cuja relação, nos indivíduos e nas sociedades, diverge no espaço e no tempo), a saber: o elemento passional e afectivo (cfr. o gr. pathos, ou πάθος); o elemento ético e virtuoso (cfr. o gr. ethos, ou έθος); e o elemento lógico e racional (cfr. o gr. logos, ou λόγος).
Nos meus dois primeiros posts, afirmei que as ideologias funcionam, nas sociedades modernas, como o pólo racional motivador da acção social e política, constituindo as comunidades nacionais o seu outro pólo, passional ou afectivo (isto não quer dizer que as ideologias, sendo propriamente racionais e do domínio dos princípios, não provoquem acções sociais e políticas apaixonadas, nomeadamente quando vividas a partir de uma determinada comunidade, ou que uma existência nacional não possa ser vivida de um modo propriamente racional, nomeadamente mediante a assunção de determinados fins e o estabelecimento de estratégias para os alcançar). Pretendo agora mostrar como a relação entre estes dois pólos (que correspondem aos elementos humanos do logos e do pathos) é mediada pelo exercício virtuoso dos poderes concretamente oferecidos aos seres humanos (a que corresponde o ethos), o qual, na esfera da acção política, cabe hoje formalmente aos partidos políticos.
Ethos, etimologicamente, quer dizer “um caminho habitual”, sentido que, sendo comum ao do vocábulo latino mos, moris, mostra a identidade conceptual que existe entre a ética e a moral. Uma e outra, na verdade, expressam esta função antropológica essencial pela qual, por meio da prática das virtudes, se relacionam e equilibram os pólos racional e afectivo da acção. Mas se o que é próprio do homem é caminhar (como admiravelmente exprimiu Gabriel Marcel, no seu livro Homo Viator), esse caminho pode fazer-se de duas formas, nomeadamente desbravando caminhos novos, ou caminhando os já desbravados, sentidos que, ambos historicamente afirmados pelo termo virtude, permitem pensar a distinção também existente entre a ética e a moral.
O sentido com que o termo virtude primeiro se deu na história (e não só na Grécia, mas um pouco por todo o mundo) foi o de “desbravar caminhos novos”, segundo o qual surge significando força, excelência, coragem exemplar e heróica, a qual é socialmente oferecida como modelo dos comportamentos humanos. Neste sentido a virtude afirma-se especificamente como ética. O segundo sentido, posterior ao primeiro, foi o de “caminhar os caminhos já desbravados”, pelo qual, interpretando e fixando racionalmente os comportamentos socialmente assumidos como exemplares, se definem um conjunto de hábitos virtuosos por relação a uma determinada ideia de bem. Neste sentido a virtude assume-se especificamente como moral.
As virtudes colocam-nos, portanto, no seio deste dinamismo propriamente humano que se joga entre a força pessoal e intransmissível do exemplo e a operatividade formal do seu conceito. Como diz André Comte-Sponville, no início do seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, «se a virtude pode ser ensinada, como creio, é mais pelo exemplo do que pelos livros. Para quê, então, um tratado das virtudes? Para isto, talvez: tentar compreender o que deveríamos fazer, ou ser, ou viver, e medir com isso, pelo menos intelectualmente, o caminho que daí nos separa.»
Quando tal não aconteça, porém, quando, numa determinada sociedade, a imposição de esquemas racionalmente virtuosos não consiga pôr-se de acordo com os comportamentos daqueles que nela vivem – e em especial com os dos seus governantes –, surgirá inevitável e crescentemente a contestação, a qual, chegada a um ponto de ruptura, poderá ser radicalmente assumida por uma oposição entre a comunidade e a sociedade, a partir do que as propostas de novos comportamentos se transformarão em propostas de um novo homem e de uma nova sociedade, heróica e exemplarmente assumidas por seres humanos concretos.
Não podendo aqui desenvolver este ponto, nem compará-lo com um tempo – que é o nosso – em que a política se assume separada da moral e em que quase não se escrevem tratados sobre a virtude (instintivamente repudiada a partir da sua apressada consideração como um mero hábito), deixo apenas, para posterior meditação, a definição aristotélica de virtude moral, a qual remete justamente para este dinamismo propriamente ético do ser humano: virtude moral – diz ele – é «um hábito procedente de livre eleição, consistindo num meio-termo com relação a nós, determinado pela razão tal como o determinaria o homem prudente.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, IV, 6).
Posto isto, assim breve mas solidamente apetrechados, vamos então ao nosso tema: os partidos políticos. Ora, o que temos que começar por reconhecer é que os partidos políticos – entidades que, nos nossos dias, cumprem a tarefa de, na esfera da acção política, equilibrar o pathos e o logos – são culturalmente contemporâneos das nações e das ideologias, resultando da possibilidade de participação política criada pelas democracias constitucionais, cujo principal desígnio é garantir a livre expressão da vontade popular.
De facto, se sempre houve, ao longo da história, partidários de determinadas doutrinas e/ou ideias, agregados em ordens, seitas, ou escolas que as pretendiam estudar e difundir, já a existência de instituições com personalidade jurídica, determinadas por ideais exclusivamente políticos a partir dos quais pretendem formar politicamente os cidadãos e influenciar poder, deu-se pela primeira vez na primeira metade do século XVIII, em Inglaterra, tendo-se rapidamente espalhado por todo o mundo ocidental.
Centrando-me no que aqui particularmente me interessa, aquilo que quero notar é que os partidos políticos, hoje – e de um modo geral –, reduzem-se quase exclusivamente à sua função de conquista e manutenção do poder, descurando, na mesma medida, a tarefa, que também é sua, da formação política dos cidadãos.
Este modo de ser e fazer política, facilitado por uma ciência política de matriz sociológica e positivista, amplamente difundida ao nível do senso comum, pressupõe e propaga a ideia notoriamente marxista de que os partidos são a expressão política de determinadas classes sociais associadas para influenciar e/ou ocupar o poder. Ora, não sendo falsa, esta abordagem é redutora, porquanto considera a realidade política unicamente a partir dos factos da luta pelo poder, esquecendo que estes unicamente se compreendem por relação à esfera do dever-ser: é essa a tensão própria do ethos.
É interessante notar, nesse sentido, como a actual Lei dos partidos políticos (Lei 2/2003, de 22 de Agosto) – que os define como entidades com personalidade jurídica (art. 3º), livres e independentes (art. 4º), cuja actividade, de carácter nacional (art. 9º) e ideológico (art. 37º), se deve exercer por meio da persuasão (art. 8º) –, ao estabelecer as funções que lhes são próprias, não só dá uma maior relevância ao aspecto da formação dos cidadãos do que ao da luta pelo poder, como tem o cuidado de enumerá-los sempre por esta ordem.
O artigo primeiro, de facto, diz que «os partidos políticos concorrem para a livre formação e o pluralismo de expressão da vontade popular e para a organização do poder político, com respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política», enquanto o artigo segundo estabelece como «fins dos partidos políticos: a) Contribuir para o esclarecimento plural e para o exercício das liberdades e direitos políticos dos cidadãos; b) Estudar e debater os problemas da vida política, económica, social e cultural, a nível nacional e internacional; c) Apresentar programas políticos e preparar programas eleitorais de governo e de administração; d) Apresentar candidaturas para os órgãos electivos de representação democrática; e) Fazer a crítica, designadamente de oposição, à actividade dos órgãos do Estado, das Regiões Autónomas, das autarquias locais e das organizações internacionais de que Portugal seja parte; f) Participar no esclarecimento das questões submetidas a referendo nacional, regional ou local; g) Promover a formação e a preparação política de cidadãos para uma participação directa e activa na vida pública democrática; h) Em geral, contribuir para a promoção dos direitos e liberdades fundamentais e o desenvolvimento das instituições democráticas.»
Não é esta, porém, a prática da acção política e partidária, facto que deve francamente preocupar-nos. Jacques Maritain, num texto escrito em 1939, intitulado Democracia e Autoridade, juntou um pequeno anexo sobre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, que aqui nos pode ajudar a pensar. Aí, partindo da distinção essencial entre lei e decreto – os quais «pertencem a duas esferas tipicamente distintas: a lei, à esfera das formas estruturais da autoridade, o decreto, à do exercício existencial da autoridade» –, mostra como a ocorrência histórica do conceito híbrido do decreto-lei é algo que se compreende no movimento cultural mais amplo de subordinação da inteligência à vontade, do dever ao poder, da realidade ao facto.
Ora, para resolver o problema do funcionamento dos partidos políticos numa democracia – que, segundo ele, resulta dos órgãos de governo estarem sob o domínio dos partidos –, o que Maritain propõe é distinguir claramente as funções legislativa e executiva, ficando «só para as assembleias deliberativas e para a preparação da eleição destas o jogo e o funcionamento dos partidos. Estas assembleias deliberativas, representando a nação, teriam somente que estabelecer e manter em dia as leis da comunidade, votar os impostos, assim como, eventualmente, as declarações de guerra e a rectificação dos tratados de paz, enquanto os actos de comando e os decretos particulares que comportam – preparados com o concurso das assembleias e das suas comissões e controlados por elas, no que diz respeito à sua conformidade com as leis – dependeriam de um governo cuja existência e iniciativas não estariam à mercê das assembleias», sendo que «este desdobramento entre corpos deliberativos eleitos segundo o sistema de partidos e órgãos de governo designados directa ou indirectamente pelo povo (...) deveria encontrar-se em todos os graus da escala, desde a mais pequena organização comunal até às estruturas mais elevadas do Estado.»
Não sei se a proposta de Maritain é exequível, ou se resulta, como ele próprio adverte, da imprudência de «um filósofo que toma para si o papel de legislador.» Mas o facto é que dá que pensar. E mais ainda num mundo em que o discurso político se encontra, de um modo geral, ferido no seu âmago: a credibilidade! Pergunto-me, sobretudo, se a sua proposta – que me parece, pela própria natureza das coisas, irrealizável ao nível dos órgãos de soberania – não poderá ser frutuosamente aplicada ao nível das estruturas organizacionais dos partidos políticos.
Julgo, de facto, que se os amorfos e ineficazes grupos de estudos, que lá vão sobrevivendo no seio da maioria dos partidos políticos, se transformassem em órgãos estatutariamente independentes, com autonomia financeira e voz e representatividade próprias, cuja acção se centrasse no estudo, no debate e no esclarecimento da realidade política, nacional e ideologicamente perspectivada, com expressão a todos os níveis da estrutura partidária, julgo – dizia – que tais órgãos se poderiam constituir como um contraponto eticamente poderoso da prática política partidária da luta pelo poder.
É claro que, para isto, os seus membros estariam impedidos, por meio de uma regra geral, de serem escolhidos como candidatos para os cargos executivos dos órgãos de representação democrática, tendo de estabelecer-se com muito cuidado a extensão e a aplicação desta regra. Esta mudança, portanto, não será fácil! Mas ela é fundamental para que o diálogo no seio dos partidos políticos não seja unicamente a expressão de uma luta pelo poder, mas o reflexo da tensão concretamente estabelecida entre a vontade de poder e a inteligência do dever: tal é, hoje, o ethos dos partidos políticos.
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