quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Ateus graças a Deus




Tomo a liberdade de comentar o post da Sofia bem como os comentários do Carlos Inez, sv e Gonçalo Magalhães Colaço sob a forma de um post autónomo. E faço-o (perdoem-me a «esperteza») com recurso ao excerto de um texto que publiquei na Visão em 2004 a propósito da «Lei dos Véus». Chamava-se «Ateus Graças a Deus» e rezava assim:


«Não vale sequer a pena perder tempo a imaginar as trapalhadas que os franceses comprarão com a passagem da polémica lei dos véus. Não vale a pena enumerar as perigosas consequências de um dos actos legislativos mais estúpidos da história da V República. Vale a pena, isso sim, reflectir sobre o tenebroso equívoco que lhe está na origem.
O laicismo é, bem entendido, um princípio saudável. A separação clara das águas entre a Igreja e o Estado é um princípio fundamental para a consolidação das democracias. Até aqui estamos todos de acordo. Sucede que, na linha do jacobinismo e do anti-clericalismo mais primários, o que os franceses estão a tentar fazer é precisamente o contrário do que pretende alcançar o ideal laico. Eu explico. A ideia laica pretende garantir que nenhuma confissão ou credo religioso tenha um direito de primazia sobre qualquer outro. Muito menos honras ou privilégios de Estado. O laicismo é, nesta acepção, um ideal profundamente tolerante. Visa permitir que diferentes confissões e credos floresçam lado a lado na sociedade em condições de absoluta igualdade. Que católicos, muçulmanos, hindus e ateus mereçam um tratamento indiscriminado por parte do Estado. Nada menos, mas atenção, nada mais.
Ora o que os franceses estão a fazer é uma interpretação fundamentalista e deturpada da ideia laica. Estão a confundir laicismo com a ideia de que devem abolir-se ou controlar-se quaisquer vivências ou manifestações religiosas. Estão a confundir laicismo com o ideal da ausência de religião em todos os domínios da vida. Perversa e paradoxalmente, estão a erigir o ateísmo a religião oficial do Estado. Uma ideia que felizmente entre nós nem o Bloco de Esquerda teve ainda a lata de defender. Mas que em França vai conseguindo o improvável milagre – privilégio das ideias verdadeiramente cretinas - de unir a esquerda mais radical à direita mais troglodita. Esperemos ao menos que a coisa se fique por lá.»


Dito de outra forma: o laicismo não é religião nem obsessão. Nesse sentido não posso estar de acordo nem com o Carlos nem com o Gonçalo. Muito pelo contrário, o laicismo é uma importantíssima conquista civilizacional. É a deturpação fundamentalista do ideal laico que é, no meu entender, um sintoma de decadência e, em certo sentido, uma religião e uma obsessão.

23 comentários:

SV disse...

Este post, eu subscrevo.

Anónimo disse...

Naturalmente que me referia aos ateus na sua versão fundamentalista, militante e intolerante para quem pense doutra maneira. Graças a Deus que esses são poucos, pese embora o objectivo abertamente declarado dum dos actuais Bispo e apóstolo do ateísmo, Snr. C. Hitchens, seja o de transformar cada - incauto e desprevenido, ou acrítico - leitor dos seus livrecos num ateu.

Com os melhores cumprimentos,
Carlos C. Inez

Manuel S. Fonseca disse...

Pedro, bela oração. Mas quanto à “deturpação fundamentalista do ideal laico” que o Pedro sugere ser “um sintoma de decadência”, temo que tal deturpação seja apenas um natural sintoma de vida. Nenhuma teorização (eu diria ficção, porque tanto é ficção o laicismo como o são as religiões) escapa à contaminação do extremismo. Contaminação que chega uma vezes por rigorismo intelectual, outras por oportunismo sofista (pobres dos rigorosos sofistas). Repare que o Carlos C. Inez, que não é obviamente laico, na sua fé religiosa não consegue encarar um autor como o Hitchens doutra maneira que não seja a do auto de fé. O que, mesmo sem o conhecer, reputo que jamais proporia efectivamente. Caramba, se queremos recusar Hitchens, deve haver argumentos teológicos, filosóficos ou científicos mais válidos e com sentido do chamar-lhe Bispo ou autor de livrecos... O cristianismo, por exemplo, já leva dois milénios, sobrevivendo a esses “sintomas de decadência” (seitas, cismas) desde o começo, com algumas fogueiras pelo meio, quiçá justificadas por invernias mais rigorosas. Sem essas deturpações, sem a capacidade de as interrrogar e extirpar, teria o cristianismo sobrevivido? Auguro ao laicismo um futuro risonho e de límpidas manhãs.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

Ah!, a famigerada questão da maldita vírgula. Queria eu escrever, «como soe dizer-se, hoje, o mais puro e furioso fundamentalismo monomaníaco» e ficou «como soe dizer-se hoje, o mais puro e furioso fundamentalismo monomaníaco». Nada de muito grave desta vez, porém, uma vez defender e subscrever, sem hesitação, ambas as interpretações.

Claro, hoje é muito politicamente correcto defender o laicismo. Mas o que quererá verdadeiramente significar o Pedro Norton quando afirma: «A ideia laica pretende garantir que nenhuma confissão ou credo religioso tenha um direito de primazia sobre qualquer outro. Muito menos honras ou privilégios de Estado. O laicismo é, nesta acepção, um ideal profundamente tolerante. Visa permitir que diferentes confissões e credos floresçam lado a lado na sociedade em condições de absoluta igualdade. Que católicos, muçulmanos, hindus e ateus mereçam um tratamento indiscriminado por parte do Estado»? Quer o Pedro Norton significar que devemos respeitar as Vacas em respeito aos Hindus? Que devemos o mesmo reseito oficial ao Natal que ao Ramadão? Que deve o Governo convidar equivalentes representantes anglicanos, baptstas, anabaptistas, hindus, budistas, muçulmanos e sei lá quem mais de que confissões religiosas, sempre que presente ou convidado seja o Cardeal Patriarca para qualquer cerimónia oficial?...

Em nome de quê senão do muito aplaudido laicismo se negam hoje as raízes cristãs da Europa?

É o laicismo «uma importantíssima conquista civilizacional»???... Desde quando?

O laicismo não é mais, na realidade, senão um eufemismo para esconder uma raiva surda à religião em geral e ao cristianismo, ou mesmo catolicismo, em particular. Basta ter lido o Comte para perceber o exacto significado e alcance das ideias que presidem à actual exaltação do laicismo. O resto é fantasia. Mas, entretanto, não por acaso, hoje celebramos o Dia das Bruxas, o Dia dos Namorados ou o 25de Abril, entre outras datas e efemérides, com mais genuíno fervor que a Páscoa ou o Natal. E se ainda não celebramos o Dia do Animal ou dos Animais _ julgo eu, mas posso andar distraído _, muito não falta para o começarmos a fazer com não menor exaltação e fervor.

Anónimo disse...

Manuel: fico sossegado com o seu augúrio e, no essencial, concordo com a seu optimismo dialético.

Gonçalo: receio que não tenha percebido nada do que eu escrevi (seguramente culpa, minha mais uma vez). Ou que, na sua fúria de discordar por discordar, tenha abandonado o texto a meio. É que, logo a seguir ao excerto que transcreve está dito: «Ora o que os franceses estão a fazer é uma interpretação fundamentalista e deturpada da ideia laica. Estão a confundir laicismo com a ideia de que devem abolir-se ou controlar-se quaisquer vivências ou manifestações religiosas. Estão a confundir laicismo com o ideal da ausência de religião em todos os domínios da vida. Perversa e paradoxalmente, estão a erigir o ateísmo a religião oficial do Estado». Não ponha pois, caro Gonçalo,por mera facilidade argumentativa, tudo no mesmo saco. O laicismo (seriamente interpretado) de forma alguma conduz ao fim da celebração do Natal ou à negação das raízes cristãs da Europa (que de resto são historicamente inegáveis). E é, na minha humilde opinião (precisarei de invocar mais alguma coisa para a ter?) uma importante conquista civilizacional.
Quanto ao Comte agradeço, embevecido, a recomendação. Já quanto ao Dia do Cão receio que tenha sido recentemente proposto na AR.

SV disse...

«Em nome de quê senão do muito aplaudido laicismo se negam hoje as raízes cristãs da Europa?»

Negar a influência do cristianismo na civilização ocidental, é estúpido e não tem nada a ver com laicismo. Toda a ideia é dada à subversão, e o fanalismo não participa na composição do conceito.

«É o laicismo «uma importantíssima conquista civilizacional»???... Desde quando?»

É! O laicismo é o garante que todo e cada cidadão, individualmente considerado, tem o direito a viver a sua religião (seja ela qual for), o seu agnosticismo, o seu deísmo ou o seu ateismo, em liberdade e paridade.
Isto é mau?

«O laicismo não é mais, na realidade, senão um eufemismo para esconder uma raiva surda à religião em geral e ao cristianismo, ou mesmo catolicismo, em particular.»

Pois, a modos que não estudámos pelo mesmo catecismo. Embora lhe fique grata por apontar a descomunar diferença que existe entre "Cristianismo" e "Catolicismo".
O que é curioso é que os católicos não se bastam com o facto de um ateu lhes dizer: "não professo a tua fé, não acredito na tua Igreja, mas proicuro conduzir a minha conduta de acordo com os princípios cristãos". Assim até parece que o que procuram é validação ou reconhecimento. Quando o que lhes ensinam as "escrituras" é, precisamente, que o que importa é ser puro de coração.
Não percebo. Ou melhor, até percebo. Gostava é de não perceber.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

Tempos estranhos, muito estranhos, estranhíssimos... Nada há, hoje, que possa dizer-se que logo assumido não seja senão em termos pessoais, com todo o mais vivo sentimento à flor da pele, como se toda a discordância sempre ad hominem fora. Sinal do ciclo dos tempos que estamos vivendo?...

Afirma o Pedro Norton recear não ter eu percebido nada do que escreveu. È uma possibilidade, sem dúvida _ e não necessariamente por culpa sua. Todavia, como também parece evidente, mais do que afirmar a falta de entendimento de terceiros importaria demonstrar as razões desse mesmo desentendimento, esclarecendo, tanto quanto possível, de uma vez por todas, quanto separa o errado entendimento do bom entendimento. Infelizmente, porém, neste ponto, o Pedro Norton limita-se a citar o seu próprio texto sem mais acrescentar, nada acrescentando nem esclarecendo, de facto. Não, o importante não era recitar-se, uma vez mais, seria ter respondido às perguntas que deixei formuladas no comentário anterior. Afinal, porque afirma estarem os franceses a «fazer uma interpretação fundamentalista e deturpada da ideia laica»? É realmente assim tão deturpada? E mais do que isso, «a confundir laicismo com a ideia de que devem abolir-se ou controlar-se quaisquer vivências ou manifestações religiosas»? Onde foi tal defendido? Propuseram, os «franceses», alguma vez a abolição de toda a vivência religiosa? Propuseram alguma vez a abolição todo e qualquer culto religioso? Não se afigura que tenham chegado a tanto, como tampouco estão ou pretendem «erigir o ateísmo em religião oficial do Estado», embora lícito seja dizer, como preceitua o laicismo, procurarem tornar o ateísmo como o princípio e prática correntes do Estado (independentemente do disparate que isso possa constituir).

Ou seja, não se afigura que a minha «fúria de discordar por discordar» me haja cegado mas tão só que, na economia de um comentário, parece legítimo atermo-nos ao essencial deixando para segundo plano o acessório.

Claro, sempre direi, muito politicamente correcto sendo, alienável ser ao Pedro Norton a liberdade de ter as «humildes opiniões» que entenda mas, não sendo (ainda, pelo menos), um Aristóteles, um Platão, um S. Tomaz ou alguém em equivalente plano, precisa, de facto, «de invocar mais alguma coisa» que justifique a defesa da sua peregrina tese segundo a qual constitui o laicismo «uma importante conquista civilizacional».

Quanto ao Comte, embevecido ou não, não é para agradecer. Na verdade, não se tratava de uma recomendação mas de um enquadramento. Como o Pedro Norton também deve compreender, um comentário ao que escreve é um comentário ao que escreve, não ao Pedro Norton especificamente, num plano pessoal. Um comentário ao que escreve é um comentário para ser lido por todos quantos entendem, simpaticamente, perder o seu tempo a ler-nos. Neste contexto, referir o Comte parece justificar-se para relembrar quem, fascinado pela organização da Igreja Católica em geral e pelos Jesuítas em particular, primeiro propôs, tanto quanto eu saiba, a integral substituição do calendário católico por um calendário laico, com o fito de um dia ver implantada, em definitivo, a idade da Religião Positiva. Um ideal que não parece ter desaparecido ainda dos nossos horizontes ou dos horizontes de muitos de nós.

Táxi Pluvioso disse...

Os quatro cavaleiros dos apocalipse enterram a religião... ou talvez não.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

Para ser franco, fiquei sem perceber exactamente o que é que a SV percebeu e gostaria de não ter percebido. De qualquer modo, há alguns aspectos que merecem ser esclarecidos.
Em primeiro lugar, deve a SV interrogar-se em nome de quê se negam as raízes cristãs da Europa senão em nome do laicismo. É só estupidez? Não creio, nem tenho como estúpidos aqueles que o defendem. Bem pelo contrário. Discordando de quanto defendem não deixo de reconhecer a íntima consistência da sua argumentação. Sintetizando, admitir as raízes cristãs da Europa, seria admitir um mínimo de transcendência nos destinos da Europa e do mundo que os laicistas hoje não podem, de modo nenhum, aceitar. Toda a Modernidade foi erigida tendo como base o princípio do «Homem como Senhor e dono do mundo», chegando Marx a proferir a célebre frase segunda a qual os filósofos, até então, se tinham limitado a interpretar o mundo e o que era necessário era transformá-lo. No fundo, as diferenças não são significativas. O que os laicistas pretendem é recriar um mundo fundado apenas e em exclusivo na Razão do Homem, a razão humana, demasiado humana. Porque, das duas uma, ou negam as raízes cristãs da Europa e livres estão de recriarem o Estado e o mundo à imagem e semelhança da sua Razão, ou, reconhecendo as raízes cristãs da Europa, sempre correm o risco de um qualquer princípio que transcenda a sua pobre Razão fazer desabar, sem remissão, todo o seu belo edifício argumentativo, tão dura e longamente erigido.
Ser o laicismo uma importantíssima conquista civilizacional, tudo depende, antes de mais, como é evidente, do conceito que tivermos de Civilização. Com forte probabilidade, talvez não seja o mesmo. Em todo o caso, é sempre de lembrar como os Reis de Portugal foram, durante séculos, Reis dos três Reinos, para se perceber como o laicismo ainda estava longe e não foi preciso para nada. Além disso, o respeito de que fala pela liberdade de cada indivíduo professar a religião que bem entender, ou não professar religião nenhuma, decorre, em termos políticos, muito mais do liberalismo do que do laicismo. No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a questão do laicismo é sobretudo uma questão de franceses com franceses e não nos deve preocupar muito senão quando procuram impô-la a toda a Europa e a nós também.
Por fim, um último comentário sobre a «descomunal» diferença entre cristianismo e catolicismo. Não existe «descomunal» diferença mas se todo o Católico é Cristão por definição, nem todo o Cristão é necessariamente Católico. É óbvio e essa é apenas essa a diferença explicitada no texto.
Claro, como diria Santo Agostinho, «Ama e faz o que quiseres». O mais importante, sem dúvida, «ser puro de coração», mas é preciso saber entender também o conceito de Amor em Santo Agostinho.

SV disse...

Caro Gonçalo,

Receio bem que não possamos concordar em virtualmente nada.

Por tópicos e em resposta:

«Sintetizando, admitir as raízes cristãs da Europa, seria admitir um mínimo de transcendência nos destinos da Europa e do mundo que os laicistas hoje não podem, de modo nenhum, aceitar.»

É falso.
Admitir a influência da doutrina cristã e do direito canónico, ao longo de séculos, na nossa organização social é uma constatação histórica inegável e que - só não vê quem não quer - teria de deixar uma marca indelével na cultura ocidental.
O mesmo não é dizer que se subscreve a inspiração divina dos seus obreiros. Não há aqui (nem nunca conseguirá demonstrar que haja) o reconhecimento de qualquer "transcendência".
Pouco importa onde foram buscar a sua inspiração, o que ficou ixestinguível foi o legado dos Homens.


«O que os laicistas pretendem é recriar um mundo fundado apenas e em exclusivo na Razão do Homem, a razão humana, demasiado humana.»

Falso.
O que os laicistas querem é que cada um de nós possa criar, por si, sem paternalismos, o seu próprio mundo de acordo com as convicções que bem lhe aprouver.
O que implica, por natureza, o direito a não ser evangelizado, à laia de "publicidade não solicitada".
Eu respito todas as opções confessionais e, por isso, exijo que respeitem a minha. Se isso implica que viva casada com a minha Razão, abdiquei do conforto da fé por minha conta e risco e o Gonçalo convirá que, na medida em que a minha escolha em nada bule com a sua, tem fraca ou nenhuma razão para me "importunar".


«Além disso, o respeito de que fala pela liberdade de cada indivíduo professar a religião que bem entender, ou não professar religião nenhuma, decorre, em termos políticos, muito mais do liberalismo do que do laicismo.»

Não é à toa que são historicamente indissociáveis.
O laicismo do Estado é a única solução compatível com a liberdade religiosa dos seus cidadãos individualmente considerados.


«Por fim, um último comentário sobre a «descomunal» diferença entre cristianismo e catolicismo. Não existe «descomunal» diferença mas se todo o Católico é Cristão por definição, nem todo o Cristão é necessariamente Católico.»

E nem aqui convergimos.
Aqui fui eu, com certeza, que não me fiz compreender convenientemente (e daí o Gonçalo não entender o que é que até percebo, mas gostava de não perceber).
O que quis dizer foi: se, do ponto de vista conceptual, como bem diz, todo o católico é cristão, mas nem todo o cristão é católico; na prática, o que mais vejo são católicos muito pouco cristãos.

SV disse...

«ficou ixestinguível foi o legado dos Homens»

era inextinguível, naturalmente.

Anónimo disse...

Gonçalo,
Vamos então por partes para ver se me explico melhor:
1 - O meu ponto principal é este: há uma enorme diferença entre o ideal laico - que apenas advoga a separação entre a esfera da religião e a esfera da política - e uma certa interpretação jacobina desse mesmo ideal que tende a confundi-lo com o combate, puro e simples, a qualquer tipo de manifestação religiosa e com a promoção do ateísmo. Quando os franceses impedem uma cidadã de aparecer na escola com um «chador» (uma manifestação de religiosidade feita no plano privado) não estão a defender o laicicismo. Estão a promover o ateísmo a política de estado. Quando digo que não entendeu o que eu disse quero apenas dizer que você continua a atacar uma ideia de laicismo que (parece-me óbvio mas talvez não seja) não é a minha. Pensei que isso resultasse evidente da leitura do meu texto.
2 - Resta portanto saber qual das interpretações de laicismo está mais correcta. Defende o Gonçalo que é em Comte que se deve procurar o enquadramento. Está no seu direito. Eu arrisco defender que o ideal laico está - mais ou menos tacitamente - teorizado muito antes e é muito mais tributário de Locke e da sua visão sobre a tolerância (fica portanto feita a reclamada invocação). E, consequente com esta interpretação, digo mesmo mais: não há verdadeiro liberalismo sem laicismo.
3 - Não sei se foi Comte que propôs a substituição do calendário católico por um calendário laico. Mas a tese afigura-se-me bizarra. Por uma razão simples: o calendário republicano ou revolucionário entrou em vigor em 1793, cinco anos antes do nascimento do jovem Auguste. Mas vá-se lá saber. Os tempos, já então, eram «estranhíssimos».
4 - Quanto ao mais não me interprete mal: não temos, entre nós, nenhum «plano pessoal» para onde levar esta discussão. De que, acredite, gostei sinceramente.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

Vamos então partes para ver se nos entendemos um pouco melhor:

1- O ponto principal é este: o sucedido em La Sapienza, muito oportunamente relatado no «post» da Sofia Galvão, acontecimento que prova, do meu ponto de vista, como o laicismo é um erro. Dirá o Pedro que o exemplo manifesta apenas uma situação de excesso; eu digo que manifesta a mais intrínseca natureza do próprio laicismo, cousa muito francesa, aliás. Quanto ao mais: a) não me parece que seja muito interessante voltarmos a discutir a famigerada questão do «chador» quatro anos passados sobre o acontecimento (embora não possa deixar de dizer que, afirmar constituir-se como uma «manifestação de religiosidade feita no plano privado» quando a rapariga frequenta uma escola pública, me pareça forçar um bocadinho demais a extensão do «plano privado»; b) o que me importa, como sempre me importou discutir, não é o que o Pedro Norton entende não ou não como laicismo, mas o próprio conceito de laicismo, independentemente da «ideia de laicismo» que diz ser a sua.
2- O Comte aparece exactamente como enquadramento, para melhor se perceber o significado e alcance dos ideais que presidem à actual exaltação do laicismo, ou seja, de algum modo, uma renovada exaltação, em diferentes termos, de uma qualquer nova Religião Positiva ou Religião Laica, se é permitida tal liberdade de expressão. Apenas e tão só isso, embora pouco não seja. Se o calendário revolucionário foi, como o Pedro Norton parece querer dizer, um perfeito espelho revolucionário em substituição em substituição do Calendário Católico, isto é, substituindo o Santo Padroeiro de cada dia do ano por uma qualquer figura laica e revolucionária, então tem, com certeza, primazia sobre o Calendário de Comte e exposta está a minha ignorância ou falha histórica nesta matéria. Quanto ao mais, quanto a Locke, sempre muito agradável de ler, instrutivo e a merecer aturada meditação e interpretação, sobretudo, no caso dos «Dois Tratados», não me parece que seja chamado ao caso e atribuir-se-lhe, desde logo, um ideal laicista, embora aparentemente compreensível no plano em que o Pedro Norton coloca o laicismo, afigura-se-me no entanto excessivo. Tanto mais quanto se me afigura igualmente errada, completamente errada, a afirmação segundo a qual «não há verdadeiro liberalismo sem laicismo». Bem mais grave do que isso até, o laicismo, como defendo e acabamos de ver no caso de La Sapienza, mais ou cedo ou mais tarde, sempre tende e conduz ao condicionamento e à perda da liberdade. E aqui, sim, o ponto de desacordo crucial.
3- Quanto ao «plano pessoal para onde levar esta discussão», é-me completamente ininteligível o que o Pedro Norton pretende significar com tal afirmação. O que eu escrevi e chamei a atenção foi para o facto de, hoje, ser difícil dizer seja o que for que não seja de imediato interpretado em termos pessoais, i.e., como se a preocupação fora sempre mais a de ataque e defesa de posições pessoais do que pensar as ideias e os respectivos conceitos. E isso que se aplica em abstracto nos dias correntes, aplicou-se, infelizmente, entendo, aqui também. Não sei ser mais explícito.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

SV conclui demasiado rápido, afigura-se, uma absoluta divergência entre ambos. Todavia, entre muitos pontos de divergência, alguns pontos de convergência há também. As divergências, porém, neste particular, são mais interessantes. Vejamos:

1- Ambos concordamos nas raízes cristãs da Europa. Ambos concordamos que o mesmo não é dizer e subscrever a inspiração divina dos seus obreiros. Não é essa a questão nem a dos Reis o terem sido ou não por vontade divina. A questão é a seguinte: o que é o Estado?

O Estado é a efectivação do Direito. O Direito em como função dar significado e ordenar a vida dos povos, as relações dos homens entre si e dos homens com o mundo, numa constante busca de realização das finalidades estabelecidas de acordo com o pensamento que houver dos princípios _ o que se poderia também dizer, de acordo com a respectiva Filosofia do Direito, se tal conceito ainda tivesse significado.

Ora, primeiro ponto, para a Razão humana, demasiado humana, não há princípios, ou melhor, a Razão humana demasiado humana, a Razão Iluminista, a Razão dos laicistas, repudia liminarmente quaisquer verdadeiros princípios. Segundo ponto, aceitar as raízes cristãs da Europa significaria, por um lado, terem de aceitar os princípios e, por outro, terem de aceitar que há verdades acima dessa mesma Razão humana, demasiado humana (afinal a revelação significa isso mesmo, possibilitar ao Homem aceder a verdades que, de outro modo, apenas e exclusivamente de per si, não teria capacidade de aceder). Logo, os laicistas não podem aceitar nem uma nem outra e, consequentemente, mais explícita ou implicitamente, mais não lhes resta senão repudiar e negar as raízes cristãs da Europa, sob pena de perderem cara, i.e., de serem obrigados a reconhecerem aquele mínimo de transcendência que sempre há em todo o verdadeiro pensamento mas que liminarmente recusam e repudiam.

2- Concordamos também que, pretendendo viver «casada» com a sua Razão, abdicando do conforto da sua fé, passe essa muito curiosa expressão do conforto da fé, por sua conta e risco, na medida em que a sua escolha nada bula com a minha, convenho, com facilidade, razão alguma ter para a importunar. A questão não é, porém, a SV e eu. A questão é que o laicismo ao determinar o Direito actual, constituindo-se o Estado como a sua efectivação, o laicismo importuna-me, como não poderá nunca deixar de me importunar, e isso é que me maça. Neste momento, por exemplo, gostaria de assistir ao discurso de Bento XVI na abertura do ano lectivo em La Sapienza mas, em nome do dito sacrossanto laicismo, não terei esse gosto. É ou não uma maçada? Importuna-me o laicismo ou não? E essa de afirmar os laicistas querem apenas que cada um de nós possa criar, por si, sem paternalismos, o seu próprio mundo de acordo com as convicções que bem lhe aprouver, revela, se pensarmos bem, muita ingenuidade. Na verdade, o actual proselitismo dos laicistas ainda é bem pior do que qualquer «publicidade não solicitada», como diz. E isso também me maça.

3- Ponto onde não há concordância: laicismo e liberalismo não só são completamente dissociáveis como, no que respeita à liberdade religiosa, esta existia e existiu muito antes de qualquer ideia de laicismo. É histórico.

4- Noutro ponto não concordamos nem discordamos, é simplesmente impossível refutar ou discutir sequer. Na prática, o que mais vê são católicos muito pouco cristãos? Se assim é, assim é, nada tenho ou posso dizer, embora, confesse, não perceber muito bem porque vem tal ao caso.

5- De qualquer modo, independentemente das convergências e divergências, o importante é pensar e se, no fim de toda esta troca de longos comentários, um momento ou outro haja que nos tenha permitido melhor pensarmos sobre todas as questões versadas, então podemos dizer nem tudo ter sido em vão.

Anónimo disse...

Gonçalo,
Só para acabar porque vai longa esta interessante troca de ideias:
1 - Como calcula, a única coisa que me interessa é, também, discutir «o próprio conceito de laicismo». Nisto estamos de acordo (já não se perdeu tudo!). A questão é que você, legitimamente, entende que «o próprio conceito de laicismo» é o SEU conceito de laicismo (invocando, faço-lhe essa justiça, o Comte para sustentar tal tese). E eu tenho a ousadia de pensar que «o próprio conceito de laicismo» é aquilo a que chama o MEU conceito de laicismo e, reconhecendo que não sou nenhum S. Tomás, até invoquei o Locke para que se entenda melhor porque defendo tal posição. Temos portanto uma divergência de interpretação profunda que, essa sim, parece insanável.
2 - Só voltei ao chador porque me perguntou: «defenderam os franceses, alguma vez a abolição de toda a vivência religiosa? Propuseram alguma vez a abolição todo e qualquer culto religioso?». Relembro que o meu texto original tinha por pano de fundo, precisamente a questão do chador.
3 - Acho, sinceramente, que valeria a pena que voltássemos - um dia destes e em post autónomo - à questão do laicismo vs liberalismo. O que lhe parece?

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

A proposta de voltarmos à questão do laicismo vs liberalismo, justifica-se plenamente. Neste momento, quase diria, pelas razões já em síntese expostas, ser mesmo imperioso. Infelizmente, por razões de ordem pessoal e profissionais, terá é de ficar para uma pouco mais tarde.

Já agora, a talhe de foice, ainda uma brevíssima adenda apenas para explicar que a sustentação da minha tese, para dar um ar pomposo, grave e de muita presunção, não reside no Comte. O Comte surge apenas como enquadramento exemplificativo. Nada mais.

Enfim, o importante agora é que acertado fica, desde já, um dia voltarmos a estes assuntos. Aliás, não sei mesmo como poderia ou seria capaz de vez alguma recusar tão instante e magno desafio. O assunto, de facto, é verdadeiramente sério.

SV disse...

1. «para a Razão humana, demasiado humana, não há princípios, ou melhor, a Razão humana demasiado humana, a Razão Iluminista, a Razão dos laicistas, repudia liminarmente quaisquer verdadeiros princípios.»

E não é que discordamos outra vez?

Vou tentar demonstrar-lhe o meu ponto de vista:
Há dias li um artigo científico sobre a sociopatia - atenção a psiquiatria não é a minha área, pelo que posso agora incorrer em alguma falta de rigor.
Em síntese, ali explicava-se que os sociopatas não são empáticos. Isto é, são incapazes de se pôr na pele do outro. Consequentemente, não têm qualquer sentimento de culpa e nenhum problema de consciência. O autor do texto explicava que o homem "comum", porque se projecta na situação em que coloca o outro, muitas vezes inibe-se a actuar de forma a causar-lhe sofrimento. Ao sociopata falta este crivo.

A ser assim - e parece (e faz sentido) que é - então, descobrimos que a nossa humanidade é autosuficiente na formulação desses princípios que o Gonçalo só encontra numa inspiração divina.


2. Continuo sem perceber como é que de uma única premissa "aceitar as raizes cristãs da europa", retira o reconhecimento de que nos regemos por princípios revelados.
O cristianismo - e a Igreja Católica - foi dominante, na Europa, durante séculos. Naturalmente, deixa marcas na organização social.
De qualquer modo, o Gonçalo prefere acreditar que os princípios aplicados foram "revelados" aos protagonistas. Eu, não acredito.
Tenho dias, que prefiro mesmo não acreditar. É doloroso pensar que o Deus de que falam não é afinal um Deus de bondade e que teria revelado, por exemplo, aos senhores da Inquisição que o cheiro da carne humana esturricada era coisa de somenos.


3. «passe essa muito curiosa expressão do conforto da fé»

Dou de barato. Se não pensarmos muito no assunto - e isso acontece, normalmente, em situações de aflição - era tão bom (tão mais fácil) acreditar que alguém está a olhar por nós...


«o laicismo importuna-me, como não poderá nunca deixar de me importunar, e isso é que me maça. Neste momento, por exemplo, gostaria de assistir ao discurso de Bento XVI na abertura do ano lectivo em La Sapienza mas, em nome do dito sacrossanto laicismo, não terei esse gosto. É ou não uma maçada?»

A verdade, e nós sabemo-la, é que Bento XVI OPTOU por não fazer o seu discurso na Universidade. O convite não lhe foi retirado; ninguém lhe disse que não poderia discursar.
O que sucede é que Bento XVI - que, curiosamente, no discurso que já foi divulgado, dizia que não queria impor a sua fé pelo autoritarismo - não quis discursar, porque foi reconhecido o direito (fundamental em qualquer Estado democrático) de manifestação, a alguns quantos que se lhe opõem, a si e às suas ideias.
E, portanto, nem aqui o laicismo o importunou. Devia virar as suas espingardas para o Papa, que entendeu ser mais importante salvar a face, do que falar ao seu rebanho (bad, bad boy).

Mas, para não achar que a minha oposição deriva de um qualquer gosto sado-maso pela controvérsia, digo-lhe que concordamos nisto:

«De qualquer modo, independentemente das convergências e divergências, o importante é pensar e se, no fim de toda esta troca de longos comentários, um momento ou outro haja que nos tenha permitido melhor pensarmos sobre todas as questões versadas, então podemos dizer nem tudo ter sido em vão.»

Até à próxima.

Anónimo disse...

sv,
estou certo que o gonçalo não levará a mal se eu a «desafiar» a participar no nosso próximo debate (agendado para quando der jeito) subordinado ao magno tema «liberalismo vs laicismo». Obrigado pelo seu contributo.

SV disse...

Combinado.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

1) SV expressa o ponto de vista hoje partilhado também pelos neurocientistas, acreditando todos «ser o pensamento segregado pelo cérebro assim como a bílis é segregada pelo fígado», para usrmos uma expressão de Hegel, se a memória não atraiçoa. Irremediável divergência, sem possibilidade de diálogo, sem dúvida.
2) Os princípios não se aplicam, são, antes de mais, para serem pensados. Recusar o pensamento, negando os princípios enquanto princípios, conduz, necessariamente, a outra divergência irremediável ou, como preceituava Aristóteles, em tais circunstâncias, torna completamente inviável qualquer possibilidade de um verdadeiro diálogo.
3) Extraordinário: os laicistas de La Sapienza fazem o chinfrim que fazem e o Papa é que preferiu salvar a face. Deixa-me sem palavras, SV. Não fora saber o que lhe merecem todas as confissões e até chegaria a julgar que teria algum parti pris em relação aos católicos em geral e ao Papa em particular. Mas começa-se a também perceber melhor o despropósito da sempre fatal e inevitável referência à Inquisição.
4) Sem palavras fico ainda no que respeita ao entendimento da controvérsia como resultante de um qualquer gosto sado-maso. Escapa-se-me como pensar possa vez alguma ser entendido como um gosto sado-maso mas, nos tempos estranhos que vivemos, quem sou eu para dizer ou desdizer seja o que for...
5) Infelizmente, reconheço, talvez toda esta troca de comentários haja sido um pouco mais em vão do que cheguei a supor. Terá tido, no entanto, pelo menos uma virtude, mostrar e demonstrar a intrínseca impossibilidade, de qualquer verdadeiro diálogo, como já referido, entre a fundamentalista militância laicista e quem procura, acima de tudo, perscrutar o mais fundo significado de tal conceito e quanto no mesmo se implica.

Depois do esclarecer comentário da SV, direi, caro Pedro Norton, tudo estar dito, ou, como diriam os latinos, «quod erat demonstrandum».

Um final elucidativo, apesar de tudo. Mais não é necessário.

Anónimo disse...

Sugiro fortemente a leitura do excelente discurso do Papa (na integra, acessível via link do jornal Repubblica).

Quanto às (ou os, porque quem utiliza tantas vezes e tão facilmente a palavra "falso", nunca se sabe)jacobinas e fundamentalistas SV deste
mundo, o dialogo com este tipo de pessoas é realmente díficil, convém lembrar-mo-nos que, crentes ou não, ateus ou hereges, todos seremos julgados um dia, e todas as gerações que nos precederam (e não consta que eram mais estúpidos que nós)acreditaram para havia - literalmente e não imagináriamente como se fora um mero pensamento ou secreção do cérebro)um Paraíso para
premiar os justos e um Inferno com as suas chamas para punir os maus e os injustos.

Cumpts.,
C.Catroga Inez

Anónimo disse...

Caros Gonçalo e Carlos Inês,
A SV não precisa - já o demonstrou - de nenhum «knight in shining armour» que saia em sua defesa. E mesmo se isso foose preciso, eu mais não podia fazer do que figura de cavaleiro da triste dita. Mas não posso deixar de notar duas coisas:
1 - Onde que o Gonçalo afirma ver uma demonstração eu só vejo um axioma. Mas posso estar a ver mal.
2 - A dificuldade nunca foi uma boa razão para se acabar com um diálogo. Muito menos, convenhamos, a invocação das chamas do inferno.
Proponho (reproponho) que o continuemos, a quatro, um dia destes.

SV disse...

Gonçalo:

Não seja ciumento.

Carlos Inez:

Desejar o mal dos outros é feio (para além de pouco cristão).
De qualquer modo, o esforço que faço, todos os dias, em agir com correcção, conforta-me a alma quanto à possibilidade (que, para todos os efeitos, não nego em absoluto) de um juízo final.