segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Alcochete (II) – Compreender a decisão.

A compreensão de uma decisão governamental como a relativa à escolha da construção de uma grande infraestrutura pública depende em grande medida dos pressupostos de análise. A escolha desses pressupostos depende por seu lado de interpretações teóricas sobre o funcionamento da sociedade. A lista de pressupostos a escolher – e portanto de teorias sobre o funcionamento das sociedades – é enorme. Podemos escolher pressupostos que relevam a conspiração, o interesse privado dos políticos, os lobbies, a ignorância dos governantes ou a inoperância das instituições. Na História Económica, todavia, há um outro pressuposto que melhor ajuda a compreender o que se passa.

Trata-se de partir do princípio que as decisões tomadas reflectem acima de tudo as relações existentes entre as várias forças económicas. Esse pressuposto é tão mais válido quanto mais longo for o período em análise, uma vez que se pode mais facilmente defender que a verdadeira relação de forças tem o tempo suficiente para se definir e manifestar. O caso da decisão sobre a construção e a localização do novo aeroporto de Lisboa é um bom caso para aplicar o pressuposto acima enunciado. Com efeito, a decisão em causa teve um período de incubação largo de décadas, podendo inclusivamente ser remetido ao início dos anos 1970, embora a intensidade da discussão tenha sido maior, claro, na última década.

Ora, se atendermos a que a decisão reflecte de facto o estado actual da economia portuguesa, o que revela então a decisão recentemente anunciada de construir a novo aeroporto em Alcochete? Quanto a mim, revela essencialmente duas coisas. A primeira é o peso que a existência de uma vasta região ainda pouco ocupada do ponto de vista económico tem na configuração da economia portuguesa. A segunda revela expectativas quanto ao maior potencial de crescimento do sector dos serviços relativamente ao sector da indústria manufactureira. A escolha de Alcochete representaria assim o aproveitamento de condições na fronteira geográfica do país, o Alentejo, e de crescimento dos serviços. Esta interpretação é preliminar e precisaria de ser confirmada com o recurso a alguma informação adicional. Mas é uma interpretação plausível e que permite melhor compreender o que se passou. Ela pode ser falsa (se o for, então teremos de rever a análise, incluindo a escolha dos pressupostos, o que nos levaria a outras explicações).

Vejamos então brevemente qual o papel do Alentejo na nossa economia, para o que será necessário recuar a períodos em que a agricultura ainda tinha alguma importância. Em termos europeus, o Alentejo foi durante muito tempo uma terra de fronteira, isto é, um território sub-povoado e sub-aproveitado, do ponto de vista da exploração agrícola. O aproveitamento começou seriamente talvez na segunda metade do século XVIII e seguramente ao longo de todo o século XIX e da primeira metade do século XX. A existência dessa vasta área por explorar implicou a canalização de recursos para a exploração cerealífera. Todavia, apesar da existência de vastas áreas por ocupar, a produtividade do trabalho e da terra manteve-se muito abaixo da de outras partes do Mundo, o que implicou que tal expansão só pôde ser feita sob forte proteccionismo alfandegário e governamental. Isso teve implicações essencialmente negativas para o resto do País (embora tenha também tido algumas consequências positivas, se é verdade que permitiu em momentos cruciais aliviar a conta das importações de produtos alimentares). Mas o que é que os governos podiam ter feito? Havendo uma vasta região por explorar, ela podia ser deixada ao abandono?

A pergunta pode ainda ser feita, nesta primeira década do século XXI, embora em relação a outros sectores económicos que não o da agricultura. O Alentejo aparece agora a querer dar cartas precisamente no sector dos serviços.

A expectativa de que o sector dos serviços tenha um maior potencial de crescimento em Portugal faz sentido por várias razões ligadas à história recente da economia nacional e também da economia europeia. Ora aí a região de Alcochete tem vantagens relativamente à região da Ota. Esta última está mais próxima das velhas zonas industriais do País e apresenta algumas dificuldades, uma vez que a conversão implica não só a construção do novo mas também a destruição do velho, com os custos adicionais inerentes. A região de Alcochete, ao contrário, aparece como ideal para o desenvolvimento dos serviços e não só do turismo. Recorde-se que os promotores dessa localização apontam como vantagem a facilidade de desenvolvimento de uma “cidade aeroportuária” com capacidade de aproveitar sinergias decorrentes da utilização do aeroporto projectado.

A cosntrução será também um sector a beneficiar da decisão. Aliás, será precisamente o primeiro sector a responder. Isso acontece nas duas localizações rivais, embora em Alcochete o estímulo possa ser maior, se for verdade que haverá mais a construir aí.

O facto de se compreender a decisão recorrendo a esta interpretação eminentemente económica e que recorre a uma caracterização da estrutura da economia portuguesa ajuda a melhor perceber o processo político. Mas é apenas meio caminho andado. A qualidade da decisão dependerá do seguimento que os governos lhe souberem dar. Alcochete pode revelar-se ainda um elefante branco, à semelhança do complexo de Sines, projecto que foi feito sob argumentos semelhantes, no início da década de 1970. Se o seguimento for negativo, a decisão claramente também o é.

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