segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Roberte-Nessa-Noite

Há um romance em que, pelas leis de hospitalidade, o marido, invocando a essência do anfitrião, oferece aos convidados os favores da sua mulher. Tudo acontece em 94 páginas que oscilam entre a teologia e a pornografia.
Roberte-Nessa-Noite”, esse romance, foi escrito por Pierre Klossowski, em 1954. Entra naquela categoria de livros que, pelo seu anacronismo intrínseco, e pela perda de prestígio da cultura francesa, “hoje ninguém se dá ao trabalho de ler” e que só por bizarria recomendo. Li-o tarde, nos anos 80, e continua, cinco lustros depois, a fazer parte dos meus livros de culto, como “A Idade de Homem”, de Michel Leiris, de que falei aqui, ou os “Cantos de Maldoror”, de Lautréamont, de que talvez venha a falar.
A biografia de Klossowski compete com o “amontoado de desejos carnais e espirituais” que atravessa “Roberte”, o romance em apreço. Parisiense, filho de pais de origem polaca e irmão do pintor Balthus, teve como mentores o poeta Rilke, que terá sido amante de sua mãe, e o escritor André Gide, de cujas mãos saíu, para se recolher durante alguns anos no seio de um mosteiro dominicano, na firme disposição de tomar ordens.
Em 1947, depois da Guerra, a vocação sofre um sobressalto e Klossowski abandona a vida monástica, casando-se com Denise Marie Roberte Morin-Sinclair, jovem viúva de guerra. É ela a heroína de “Roberte-Nessa-Noite”, o primeiro romance de uma trilogia erótica, com o título genérico “As Leis da Hospitalidade”. A Roberte do romance, membro do Comité de Censura do Parlamento, é tão inspirada na sua mulher, quanto Octave, o protagonista, escritor de livros obscenos, é o alter-ego do próprio autor.
O que é singular no romance é a fraternidade entre o deboche sexual (“Com uma joelhada violenta entre as nádegas, ele obriga-a a abrir amplamente as coxas; os dedos de Roberte deixam soltar todas as volutas do seu utrumsit à cara do corcunda...”) e o debate teológico (“Querendo colocar a vida do espírito ao abrigo da morte espiritual, o nosso autor criou a dupla substância na qual o espírito se torna solidário de um lugar obscuro, esta carne, imagem do segredo que toda a vontade criada partilha com ele”).
Essência e existência, corpos e puros espíritos, heresias gnósticas e Santo Agostinho, a vida da carne e os caminhos de Deus cruzam-se, em “Roberte”, com experiências sexuais limite que aproximam Klossowski da leitura que ele mesmo fez do divino e perverso marquês, no seu ensaio “Sade, Meu Próximo”.
O romance de Klossowski é um romance de risco, de uma exposição pessoal que busca a transgressão e o escândalo, formas pelas quais o autor queria aceder à comunhão com o sagrado. Tudo servido pela sintaxe clássica soberba de quem traduzira do alemão Nietzsche e Heidegger e do Latim Suetónio ou Virgilio.
Para evitar a censura francesa, “Roberte” foi publicado em edição de luxo com ilustrações do próprio Klossowski (não gostou das que Balthus, o irmão, lhe propôs), e foi vendido por subscrição. Em Portugal o livro saíu na “Livros do Brasil”, com magnífica tradução de José Carlos Gonzalez.
Klossowski morreu em Agosto de 2001 tendo, para além da literatura, deixado vasta obra pictórica, como é o caso desta que integra a colecção Berardo.

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