terça-feira, 27 de novembro de 2007

Idade de Homem

Eu andava com um pé nos 17 e outro nos 18 quando comprei, na livraria da ABC, na baixa de Luanda, a “Idade de Homem”, de Michel Leiris. Hoje, não há já ninguém que leia um livro destes. Eu li e as 222 páginas deixaram marcas. O livro de Leiris, poeta, surrealista, mas sobretudo etnólogo e amigo do Georges Bataille de “L’Erotisme”, era um livro de exposição pessoal. O autor oferecia de si mesmo um retrato implacável, arriscando por vezes uma auto-flagelação que ainda hoje me faz pensar se o verdadeiro rito de passagem para a viril idade não é uma lúcida capacidade de nos auto-examinarmos e, com calculada injustiça, desvalorizarmo-nos ao ponto de um certo escárnio.
É com esse exercício cruel que Leiris começa o livro, fazendo a sua descrição física: “...detesto ver-me de repente num espelho porque, não estando preparado para isso, acho-me sempre de uma fealdade humilhante”. Picasso, que era amigo dele, leu e disse-lhe com todas as letras: “Votre pire (ou meilleur) ennemi n’aurait pas fait mieux !” Outro pintor, outro amigo, Bacon confirmou-o com este retrato.
O propósito de Michel Leiris era o de mostrar como “a partir do caos miraculoso da infância se chega à ordem cruel da idade de homem”. Queria fazê-lo, afirmou, dizendo toda a verdade, nada mais do que a verdade. Para mim, foi essa a primeira vez que vi a literatura como uma forma de exposição pessoal e, mais do que isso, perigosa e de alto risco. Ou, como o autor explicava, era esta a única forma de introduzir numa obra literária um risco aproximado à ameaça do corno do touro que os homens de lantejoulas enfrentam na arena. Escreves, arriscas-te!
Esta visão “da literatura como uma forma de tauromaquia” fascinou-me sem remédio. Ou se escrevia para nos pormos em causa, correndo-se o risco do equilibrista no circo, ou não valia a pena, o que me liquidou qualquer veleidade lírica ou outros arroubos sinfónico-literários.
Mas será possível escrevermos e descrevermo-nos da forma desapiedada que Leiris propunha? Basta lê-lo para perceber que os segredos, os mitos (tão tocantes, o de Lucrécia, a mulher que se mata, e o de Judite, a mulher que mata), a encenação teatralizada são, mais do que os factos verdadeiros, a matéria da “Idade de Homem”. Neste livro catártico onde Leiris percorre família, mulheres, masturbação, sadismo, sagrado e suicídio, para mencionar apenas alguns dos temas da sua vida, acabamos por descobrir que, por mais verdade que queiramos pôr ao falar de nós, só conseguimos dizer-nos e contar-nos por símbolos, por mitos e por alegorias.
Para que conste, aqui fica a ficha do livro. “L’Age d’Homme” foi publicado em 1939, a pedido de Georges Bataille para uma colecção erótica. A edição portuguesa surgiu em 1971, na Editorial Estampa e a tradução (excelente prosa) é de Maria Helena e Manuel Gusmão.
Curiosidade final, Leiris, no livro que deu à mãe, assinou uma dedicatória reveladora: “À ma chère maman, qui lira dans ce livre des choses qui lui seront peut-être pénibles, mais qui comprendra - j’en suis sûr - qu’il ne s’agit là que d’injustices d’enfant, n’engageant pas la tendresse de l’âge adulte. Michel”

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