sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

V. Proclo, Teologia Platonica. Testo greco a fronte, Bompiani, 2004 (Post-scriptum)

Deixo para post-scriptum o passeio turístico pela obra. Como a Internet é useira e vezeira no plágio, e na pretensão culta, parece-me importante mostrar que o que afirmo em texto não decorre de umas ideias que me passaram pela cabeça ao folhear o livro.

Por outro lado, não deixa de ser divertido correr uma por uma as fontes europeias e verificar o que de uma forma ou de outra caracterizou a civilização europeia desde há muito.

Este percurso tem-me confirmado a ideia de que todas as inépcias que se dizem sobre a identidade europeia não são mais que isso: locuções de ineptos. A Europa ser democracia, direitos do homem, construção meramente voluntária, anti-histórica, a Europa ser uma mera encruzilhada de civilizações cai pela base sempre que nos defrontamos com as suas fontes. Nelas nunca encontro turcos, raramente encontro árabes (e sempre com um papel bem diverso do que a propaganda gosta de afirmar).

Proclo é importante a vários títulos. Como mestre do Pseudo-Dionísio o Areopagita marcou a teologia e em geral a filosofia e a alta cultura (é quase psicólogo do inconsciente, para dar um exemplo - 651) durante a Alta Idade Média e a Renascença.

É evidente que se pode dizer que a grande maioria dos europeus ignoram as causas do que os caracteriza. Não são por isso menos importantes, bem pelo contrário. Quem ignora a lei de gravidade não deixa de levar com o pedregulho na cabeça. Conhecer a dita lei é bem capaz de permitir evitar os seus feitos perniciosos.

Proclo é o primeiro autor em que vejo a referência à distinção entre ter e ser (“é mais importante o ser que o ter” etc., etc.) . Esta irritante distinção aparece pela primeira vez na História neste texto, que seja do meu conhecimento. Ignora-se de quem seja a sua autoria. Mas provavelmente começa aqui a irritante tradição de se dizer que o ter é menos importante que o ser, tradição enfadonha, pirosa e que se reduz a dizer muito pouco (335).

Sob o ponto de vista ontológico a imagem do prado (515) (em termos simples, paraíso, ou ponto onde a realidade é mais intensa) aparece igualmente, embora referido de modo lateral. Figura bem mais relevante na formação da simbólica europeia, deveria ter sido objecto de bem mais vasta atenção pelo discurso actual.

Tem o mérito de ter uma heurística explícita, coisa que não é muito comum nos filósofos: pelo facto de ter intelecção de si mesmo, todo o intelecto tem intelecção de todas a entidades que o precedem (base da heurística em Proclo 653); o inteligível está para o uno como a vida em relação à potência e o intelecto para o ser (827).

Proclo oferece-nos os lugares comuns que levam à prevalência do Uno e à sua caracterização:
1) A impossibilidade de o Ser ser o princípio unificador (213), o uno não é idêntico a si 287, gerar entidades segundas é diminuição de princípio causal, logo o uno não o pode fazer 303, o uno ilumina a essência 317, o uno transcende qualquer determinação 399, o primeiríssimo número é incognoscível 597, na relação entre o uno e o ser 581, a ligação entre uno e ser é incognoscível 615
2) No entanto, o uno produz 311, o uno como causa inefável de todas as coisas – (é causa afinal?, pode ser objecto desta determinação? O “inefável” é cláusula escapatória bastante ou apenas risco assumido no campo do indizível? 421).

Bom “henologista”, não deixa de ter uma ontologia como é evidente:
1) sem horror ao ilimitado, dado que este é sinal do divino 343
2) o misto, entre ilimitado e limitado, o ser, é mónade 351 - o que faz pensar em Leibniz como o último neoplatónico, a mónade, fonte dos números 569: Leibniz diria o mesmo, a mónade é continente universal 595, os números são anteriores às formas 577 Jung gostaria de ter percebido isto mais cedo na vida
3) a eternidade princípio causal do ser 381
4) a presença 519
5) não existe igualdade entre duas entidades ilimitadas 589
6) o desprezo da sucessão temporal típico de muito discurso filosófico 997


Em bom neoplatónico tem igualmente uma teoria da consistência do mundo algo particular:
1) o primado do bem - o afastamento do demónio enganador em Descartes parte da mesma premissa 107, em consequência, está contra os maniqueístas 127
2) a amor como explicação da dádiva do uno 151 mas que depois não desenvolve, o amor como cimento da ligação (mas fala do Eros grego, não do “agape” ou da “filia”) 161, mas amor em segundo grau 165
3) a obsessão do “circulus” 133, a ressurreição 175, a geração relativa das almas, não geradas no tempo em Timeu de Platão 177, o modo cíclico na geração dos entes (223) mas e princípio filosófico, não crença geral
4) espantam as apenas as esparsas referências a Plotino e Porfírio (231, etc.) como se houvesse a preocupação de se demonstrar puramente platónico, de ir à fonte original
5) a ligação entre a cópia e o modelo baseia-se na semelhança 863, 867, 873 947 no entanto o que permanece misterioso é o fundamento da medida da diferença com o modelo, a cadeia 873 imagem semelhante á da escada de Jacob que tanto esteve presente na Idade Média.


Uma cosmologia e uma física
1) O instante como limite em Aristóteles, antecipando a teoria matemática da vizinhança 385; já o sabíamos, Aristóteles antecipou muita coisa: nomeadamente os efeitos terríficos de se deixar imperar o vulgo
2) O cosmos é unigénito 749. Ora tendo em conta a eternidade do cosmo 437 a obsessão do Uno parece retirar a possibilidade da multiplicidade, e menos ainda, da infinitude de mundos. Se se imputa o neoplatonismo a Giordano Bruno, pelos vistos a ideia de infinitude de mundos não é obrigatória no neoplatonismo.
3) O movimento recto e circular 903, destrinça essencial para se compreender a História da inércia. No entanto, já no mundo sublunar se encontram os movimentos em linha recta 615, ficando sem se perceber se sequer concebia a possibilidade de uma movimento “natural” recto. Parece ir contra esta possibilidade o facto do movimento circular do idêntico 909, o facto de demiurgo dominar os períodos cíclicos 719. Até nova ordem, a inércia pensada como movimento rectilíneo parece-me conquista cristã, começando sob o ponto de vista intelectual em Santo Agostinho.
4) O geocentrismo 985 parece que não é afinal doença medieval e cristã, mas vem já do mundo antigo.


Oferece-nos igualmente uma teoria do destino:
1) ciclos da alma 345
2) lei de Adrasteia "Esta é a lei de Adrasteia: toda a alma que viu alguma das entidades verdadeiras está imune ao penar" (525, 527, 669, 753, 993) também as almas particulares podem elevar-se acima do “fatum”, que mostra a semelhança com o budismo
3) uma boa resposta ao problema do determinismo - 757 diz em suma que o que eleva as almas é regido pela providência e o que desce para a natureza é governado pelo destino.

E uma teologia em sentido estricto:
1) teologia dos Pais - expressão que comunga com a patrística cristã 341
2) o vivente em si como unigénito - temática em comum aos cristãos embora depois diga que o vivente em si é transcendente ao demiurgo 375, a tríade unigénita 387
3) só a partir do livro V, 3 começam a aparecer as divindades do panteão clássico 641
4) as mutilações divinas 643
5) v.g. 915 a impressão que dá é a de que Proclo pretende dar uma imagem de uniformidade á teologia grega semelhante á que a cristã tem. nunca referindo o cristianismo é sempre com ele que se está a confrontar
6) tipologia de divindades 965.

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