domingo, 30 de dezembro de 2007

Parábola sobre o país que somos


À laia de contributo para as muitas explicações ainda em falta, não resisto ao relato de um passo da conversa entre Pedro Guerreiro e José Alberto Carvalho, no Telejornal, da RTP1, há escassas horas (29.DEZ.2007).
Pedro Guerreiro, director do Jornal de Negócios, era convidado de José Alberto Carvalho, ‘pivot’ do principal noticiário da estação pública. O tema era, ainda, o BCP. O estatuto do convidado, o de especialista (aliás, apesar disso, olhado com ar estranhamente condescendente pelo anfitrião, numa atitude a que, hélas, o telespectador incauto se vai habituando…).
Enfim, no calor das últimas novidades, o jornalista-residente questiona o jornalista-visitante sobre as hipóteses de uma eventual lista encabeçada por Miguel Cadilhe… A resposta não se fez esperar (e permita-se-me, por ausência de registo gravado, o testemunho livre): a vitória não é impossível, mas muito improvável. Afinal, continuava Pedro Guerreiro, a solução encontrada para o BCP nasce no Governo, tem o apoio do Governo. Mesmo no cenário mais benigno, o de mera omissão, ou de não oposição, o Governo viabilizou a ida de três administradores da Caixa Geral de Depósitos para a administração do BCP. Se não quisesse essa solução, jamais o teria permitido. Portanto, e agora a grande conclusão, convenientemente enfatizada como tal, apoiar uma lista alternativa à lista de Santos Ferreira equivale a apoiar uma lista contra o Governo. Apoiar uma lista diferente da de Santos Ferreira consubstancia uma afronta ao poder político!
E mais não precisei de ouvir… Assim, de uma penada, e com esta singeleza, assumia-se o essencial: no fim, fica o medo, o medo de incomodar o poder, o medo de divergir, o medo de desafiar.
Triste, mas lapidar. A nossa matriz é autoritária. Tudo o mais é puro voluntarismo. Para quem não tenha medo de o reconhecer…

5 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Cara Sofia,
Admite,num caso como este, com os contornos policiais que o configuram e com o potencial que (ainda) tem para gerar uma crise de consequências dificeis de medir para a economia portuguesa, que um Governo (do PSD ao PS) não interviesse?
Pode discutir-se a modalidade de intervenção. A ser a de encontrar uma solução para a Administração (como é o caso), fazendo o damage control, seria admissível que o Governo interviesse de forma mole e sem convicção?

Sofia Galvão disse...

Manel, pergunta-me aquilo que, mal ou bem, eu não questionei.
É claro que percebo a necessidade de particular atenção. É claro que percebo o imperativo do damage control. Agora, tenho as maiores dúvidas sobre esta forma de ingerência directa, acintosa, escancarada de um Governo sobre os concretos desígnios e protagonismos relativos à desejada regeneração de uma instituição privada (aliás, um verdadeiro ícone do sucesso da iniciativa privada num sector marcado por anos de nacionalização e de conquistas revolucionárias). Como tenho todas as dúvidas, não lhe escondo, sobre a naturalidade com que se recebe e aceita tal ingerência. A bem da nação, também tivemos uma longa história de condicionamento industrial que talvez explique a imaturidade e a inconsistência destes processos, bem como esta recorrente promiscuidade entre Estado, poder político e mercado.
Agora, o meu ponto neste post era outro: o medo de, perante o beneplácito governamental à lista de Santos Ferreira, assumir uma alternativa. Assim como, de novo, e talvez pior, a naturalidade com que se admite isto. Então não é de pasmar que uma grande instituição financeira privada (que, apesar das sombras recentes, vale muitos milhões), com o capital disperso por milhares de accionistas, cotada em bolsa, com interesses relevantes em Portugal e no estrangeiro, com milhões de clientes, fique condicionada a eleger em assembleia geral, sem discussão, apenas aqueles que o Governo da República considera idóneos e recomendáveis?!

Manuel S. Fonseca disse...

Bom dia Sofia,
Com as ideias mais claras, depois de sono reparador e com sonhos longe da Banca portuguesa, aqui vai o meu comentário.

À Sofia assistem as razões que enumero a seguir:

1. A solução Soares Ferreira para o BCP é uma solução do Governo;

2. Ainda não surgiu uma lista alternativa proposta pelos accionistas;

3. A identidade portuguesa tem uma matriz autoritária.

Julgo que há que matizar aquelas razões com os argumentos seguintes:

1. A intervenção do Poder no BCP foi feita “a pedido” (pelo menos de um accionista), face à presunção de aumentos de capital ilícitos, como ilícito terá sido o favorecimento a, e cito Marcelo Rebelo de Sousa no ‘Sol’, “amigos e filhos de gestores ou casamentos desses filhos”. Grossa trapalhada no mínimo. Ou seja, não havia credibilidade interna para se “autosolucionar” a crise;

2. A solução Soares Ferreira tem a aprovação (desconheço reprovações públicas) da maioria dos accionistas do BCP;

3. Não vejo nesta intervenção (necessária) do Poder mais um prego para o “caixão” da matriz autoritária (que reconheço) da identidade portuguesa. Vejo sobretudo uma prova clara de que temos um empresariado e um capitalismo que se amamenta, por sua iniciativa e proveito, na teta estatal. É uma inconfessada mas clamorosa debilidade.

Sofia Galvão disse...

Manel, como sempre pressenti, estamos de acordo!
O problema é esta cultura menor e clientelar... Lembra-se da porca do velho Rafael Bordalo?
E, já agora, o homem é Santos Ferreira e não Soares Ferreira (escuso-me ao exercício do acto falhado, embora o Soares desse pano para mangas). Aliás, Santos Ferreira que, por ser escolha certa em qualquer outro contexto, talvez não merecesse ver-se envolvido em tão controverso processo. Até por isso, tenho pena.

Manuel S. Fonseca disse...

O lapso freudiano detectado pela Sofia, de que peço desculpa ao visado, não augura nada de bom para o meu futuro como liliputiano accionista do banco, e não me estou a referir a outro tamanho que não seja o do lamentável montante das minhas anoréxicas acções.