Ota: revisitar 1999
A sensatez de algumas das decisões tomadas pelos governos é de difícil avaliação por parte do público, por falta de informação suficiente. Com algum esforço, os governos podem tentar transmitir algumas ideias que ajudem a perceber se estão no caminho certo ou não. Para além disso, a oposição partidária, os grupos de interesses ou associações cívicas podem ir um pouco mais longe, consultar os documentos e emitir opiniões. Esses esforços podem ser úteis embora nem sempre ajudem a uma clarificação definitiva. Todavia, sucede que, em Portugal tais esforços praticamente desaparecerem, sobretudo da parte das associações que propugnam a defesa do sistema ecológico.
À falta de informação detalhada, trazida a público por quem governa ou por quem vigia ou deveria vigiar os governantes, podemos no entanto recorrer a uma outra forma de avaliação das grandes decisões de política económica. Trata-se de ver se fazem sentido relativamente a determinadas conceitos de desenvolvimento económico.
Duas decisões recentes, relativas à construção do aeroporto, na Ota, e à ampliação do porto de Sines, têm tal dimensão que devem, de facto, ser relacionadas com o impacto no desenvolvimento da economia portuguesa. Deve desde já avançar-se que estas decisões não parecem ser feitas pelo mesmo governo.
Durante algumas décadas, que culminaram nos anos em que João Cravinho pertenceu ao grupo de “jovens turcos” tecnocratas dos governos de Marcelo Caetano, acreditou-se em “pólos de desenvolvimento”. A partir de um investimento inicial, geralmente promovido pelo Estado, seria criada riqueza. Esta ideia de “pólo” está associada a um conceito de desenvolvimento económico que também fez muito sucesso, que é o de que a industrialização se faz por arranques ou saltos. Aqui, o nome de Rostow e o conceito de “take-off” do seu famoso livro, “Estádios de crescimento económico”, é a referência principal.
Este modelo de crescimento económico não sobreviveu ao escrutínio da história da generalidade dos países da Europa, palco principal da investigação sobre o crescimento económico. Quanto à Grã-Bretanha, por exemplo, verifica-se que a chamada Revolução Industrial foi afinal um processo gradual e relativamente lento, em que as taxas de crescimento do PNB per capita rondariam 0,5 a 1 por cento. Certo que houve avanços rápidos em alguns sectores, como o da produção de tecidos de algodão, mas a sua dimensão era de tal forma diminuta, que o impacto no resto da economia foi reduzido.
A construção do complexo petroquímico de Sines foi defendida, na década de 1960, como pólo de desenvolvimento económico. Aliás, um pouco por todo o Mundo em vias de desenvolvimento se fizeram investimentos da mesma natureza. Como se viu, o “pólo” acabou por promover pouco desenvolvimento na região. Terá trazido alguns benefícios macro-económicos, relacionados com poupanças em divisas no fornecimento de energia ao País. Mas a região de Sines não ganhou em proporção ao que lá se gastou.
A construção de um aeroporto em Rio Frio, longe dos principais circuitos de tráfico, só poderia ser defendida como um pólo de desenvolvimento da área. Ao ser escolhida a localização alternativa, numa região de maior desenvolvimento, o governo rejeitou implicitamente aquela ideia peregrina. Esta decisão parece coerente com aquilo que se pensa saber hoje sobre a natureza do desenvolvimento económico.
Os investimentos canalizados para a construção do aeroporto e das infra-estruturas relacionadas poderão assim ajudar à reorganização da região da Ota. Numa zona já industrializada e desenvolvida, mas seguramente com problemas quanto à qualidade das estradas ou quanto à qualidade das cidades e dos equipamentos à disposição dos habitantes, os investimentos relacionados com o aeroporto, directos ou induzidos, podem trazer benefícios significativos. Se tais investimentos fossem feitos numa região predominantemente agrícola, como a de Rio Frio, os resultados seriam menores. Mais importante do que isso, poderiam ter efeitos contraproducentes, ao destruir uma parte significativa do meio ambiente.
Portugal pode estar a caminhar para uma situação que já se observa em outros países, em que existe uma distinção entre, por um lado, zonas urbanas e industriais e, por outro, zonas rurais e de lazer. Isso implica que se concentrem as actividades que mais influenciam negativamente o meio ambiente em determinadas regiões. Esta divisão territorial tem benefícios evidentes, quanto a economias de escala, o que é positivo também para o controle dos danos ambientais.
Para além disso, pode ser benéfica, a médio prazo, para as regiões que foram deixadas em paz. Com efeito, elas poderão beneficiar indirectamente do desenvolvimento das regiões urbanas e industriais através da procura de serviços, particularmente os relacionados com o turismo. Para além disso, como tem sido feito em outros países, o Estado pode encarregar-se de transferir recursos financeiros de áreas mais favorecidas para áreas menos favorecidas, através do Orçamento, por forma a colmatar algumas desigualdades. Tudo isto leva tempo e pode dar-se o caso de ser considerada uma injustiça. Mas não é. A verdade é que a experiência mostra que a solução alternativa de concentrar doses massivas de investimentos em regiões pouco desenvolvidas não é melhor.
Se a decisão quanto à construção do aeroporto na Ota joga bem com a ideia de um desenvolvimento regional especializado, já a decisão de alargar o porto de Sines tem um sentido contrário. Pretende-se criar ali um porto em que navios de maior porte distribuem a carga para navios mais pequenos. Adicionalmente, pretende-se descarregar navios para contentores que serão transportados por terra para a “Europa”. Este projecto implica o aumento do trânsito de navios ao largo e do risco de acidentes, uma maior ocupação industrial da costa e o transporte regular de contentores da costa para a fronteira. É um investimento com custos ecológicos evidentes e com um potencial de criação de riqueza reduzido, por se encontrar numa área longínqua e de fraco potencial de desenvolvimento. O único factor em seu favor é o de já lá se encontrarem algumas infra-estruturas. Mas não é claro que um erro justifique outro.
Pode imaginar-se a facilidade com que os empresários sul-coreanos negociaram com um Ministro entusiasmado em fundar a “Roterdão” do Alentejo. E é interessante notar o silêncio das ecológicas, que não se têm pronunciado sobre a matéria. Em tais condições, a escolha de Sines, em detrimento das alternativas anunciadas das Ilhas Canárias e de Tânger, parece ter sido fácil, mas a costa portuguesa não devia ser tratada como alternativa à costa africana.
In P. Lains, O Economista Suave. Ensaios, Lisboa, Cosmos, 2007, pp. 87-90 (originalmente publicado em Público, 12/7/1999).
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