Há lodo no cais
Uma visita ao Porto de Lisboa, com paragem obrigatória nos magníficos painéis de Almada Negreiros, devolvem-me a preocupação sobre o futuro da Zona Ribeirinha entregue ao verbo e à tentação «betoneira» de José Miguel Júdice. (Registo a falta de pudor e de bom gosto com que JMJ minou a Quinta das Lágrimas, em Coimbra. Se assim desbaratou a estética e a história dentro de casa, o que não fará com o que não lhe pertence?)
Os portos sempre tiveram vida própria e precisam de espaço para fazer vingar a cidade no mundo. O Porto de Lisboa habituou-se a servir a capital universal mais do que a Lisboa paroquial. Almada Negreiros desenha o feudo fluvial como ninguém e o Estado Novo, mais atento ao País do que às pessoas, defendeu esta reserva estratégica até ao absurdo. Em Lisboa, a exposição do Mundo Português, nos anos 40, permitiu arranjos e pavilhões visitáveis pelos estranhos à vida do porto e, já no final da década de 50, foi desenhado junto à Torre de Belém, o primeiro «green» aberto, sem canteiros nem empedrados, para que o povo se pudesse esticar aos Domingos. (Gabo a co-autoria desse jardim a António Barreto e ao meu Pai que souberam dar primazia ao espaço e ao protagonismo da Torre). Na Zona Ribeirinha havia ainda lugar para a vela que foi perdendo vez para Cascais e para outros hábitos. Salazar lamentava a falta de velejadores no rio com um desabafo que aqui abrevio: «que pena me faz ver aos domingos os cafés cheios de jovens (...) os filhos deste País de marinheiros».
Depois, penso que foi com Azevedo Soares, Ministro do Mar de Cavaco Silva, que teve início o processo de socialização das áreas libertas pela perda do Império, pela pujança dos portos espanhóis e por um novo conceito de cidade que pressionava - e pressiona - os domínios «absentistas» da margem esquerda do Tejo.
Nasceram as «Docas». Ampliaram-se espaços verdes onde hoje os lisboetas se encontram com o rio. Surgiram bons restaurantes e tornou-se possível dançar em Lisboa sem acordar os vizinhos. Aos fins de semana alugam-se bicicletas e apanha-se sol numa multidão de caminhadas saudáveis. 30% das receitas do Porto de Lisboa vêm da actividade recreativa, para grande admiração do grupo de franceses que acompanhei na visita.
Um conjunto de postais oferecido à saída esclarece que à actividade portuária do Porto de Lisboa se junta a dinamização turística, a requalificação urbana, a preservação ambiental e a referida diversão e lazer. Um equilíbrio de cinco áreas de interesse público, difícil de gerir, mas com interesse público.
Não é de hoje a apetência imobiliária pela zona ribeirinha sempre vendida com o slogan de devolver a cidade ao rio. Quem não se lembra dos múltiplos edifícios previstos pelo POZOR - seria assim que se chamava? - o plano oportunamente moderado pela crítica dos anos 90?
O que separa a cidade do rio é a linha do comboio e as duas vias rápidas que a ladeiam. O que separa a cidade de parte do rio é a afirmação de Portugal na Península, na Europa e no Mundo, com o primeiro porto Atlântico da UE (já ultrapassado por Barcelona, Valência e Algeciras). O que separa a cidade do rio é a escolha que Júdice fará entre o espaço de trabalho e de recreio; o interesse público e o privado.
Na moderníssima torre de controlo, no Dafundo, não deixo de ouvir o desabafo de um técnico: «Não sei como as pessoas se deixam enganar. Parece que não vêm o que aconteceu em grande parte da Expo. Os lisboetas têm hoje um acesso aberto ao rio que nunca mais terão se entrarem aqui os blocos do Júdice. Nunca mais». Vamos ver.
3 comentários:
Inês,
Por todas as razões que muito bem aponta seria imprescindível que a pessoa escolhida para tão escaldante tarefa estivesse acima de toda a suspeita. Acontece que JMJ é, não apenas hoteleiro «lui même» mas, na sua qualidade de advogado, é o representante de ínumeros interesses imobiliários e hoteleiros que só com muito esforço e boa vontade se podem considerar compatíveis com o interesse público que devia nortear as suas decisões nesta matéria.
É um país do «vale tudo».
Gosto de ver que se começa a desenhar uma defesa do que tem sido feito no porto de Lisboa. Essa defesa não significa, claro, que se ache que a APL deva ser deixada em roda livre, como até agora. E é engraçado ver como o Presidente António Costa já começou a recuar nas suas intenções, como se depreende de partes da entrevista que deu ao DN há uns dias.
Olá, Inez (há quanto tempo!)Deixei-te um desafio no Corta-Fitas...
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