terça-feira, 27 de novembro de 2007

Arquitectura e Comunidade

Já aqui escrevi um post-tríptico sobre arquitectura e urbanismo, mas a solicitação do Pedro, merece este contributo. Não falarei sobre projectos em particular. Porque não é isso que está em causa.
O que importa salientar é isto, todas as obras estão sujeitas à divergência dos gostos, todos os arquitectos com licenciatura estão perante a lei nas mesmas condições, todos os promotores estão no seu direito de promover o que os planos permitirem, as câmaras (como o Estado) não tem nesta nossa democracia uma linha estética, o povo não tem voz senão em pachorrentos domingos de 4 em 4 anos.
Que fazer? Que fazer que possa defender o que o Pedro chamou a colectividade e que eu prefiro chamar comunidade?

A primeira dificuldade é essa mesmo: identificar uma comunidade. Da mesma forma que hoje, é difícil identificar um povo numa pátria. Precisaríamos de partilhar valores, palavras e imagens. E partilhar significa aqui comungar, ou seja, partilhar um alimento comum. Na história temos essa identidade sem que a criatividade fosse diminuída. Estamos mesmo em crer, que só há inovação onde o futuro não recusa ou anula o passado. Ou seja, sem continuidade não há novidade.
A segunda dificuldade, é a presunção do julgamento histórico. Sempre que uma obra trás um vento de ruptura com o conhecido, com o habitual, ou com o expectável, as reacções tendem a ser catastrofistas. Depois há um tempo de adaptação. Por fim, podemos estar na presença de um ícone. Mas este poder ser dá ao autor um estado de graça que perdura para além de si próprio e serve de exemplo para futuros arrojos. Convém, no entanto, discernir se um ícone tem realmente qualidade para além da conquista do estatuto de ícone pela sua bizarria. Convém, também, não ficar atado pela possibilidade de se estar a cometer um erro de avaliação. Os debates e a sua vivacidade terão uma outorga histórica que nunca poderemos determinar com certeza. A força do que se impõe será, sempre, um espelho do que somos e do que fomos. Poderemos, quanto muito não gostar do que vemos no outro lado do espelho.
O que em Portugal está estabelecido, é que um arquitecto tem liberdade de propor o que quiser desde que cumpra a legislação em vigor tanto para o exercício da sua profissão, como para intervir nos lugares para onde recebe um encargo. A questão do gosto não lhe é colocada. O gosto, que é sempre de algum modo um pacto com o meio em que nos movemos, é desenvolvido desde a formação até à prática, no ensino, no convívio, no intercâmbio, nas tendências, nos discursos do tempo. Cada um, com o seu passado, assume esses factores de forma diferente, adere ou recusa este ou aquele. Naturalmente, num tempo em que a comunidade e a sua identidade não existem, e todos os factores formativos (atrás referidos) são tão díspares e de tantas proveniências, o resultado é cada vez mais, sob o preconceito da modernidade e da incompreensão que a história há-de corrigir, estranho a todos. Mais do que estranho ele é bizarro. Mas não são bizarros a maior parte dos ícones da arquitectura contemporânea?
Esta dificuldade por que passamos, nós arquitectos, é comum a todos de alguma forma. Podemos alhear-nos das consequências mais profundas destas questões. O tempo tem uma força muito poderosa. Os clientes exigem ícones, o mercado só reconhece ícones, as câmaras municipais precisam de ícones, etc... Os arquitectos, como outros artistas, interpretam o seu tempo e não se pode pedir a todos que inventem o tempo futuro. Até porque o alvará (licenciatura) que lhes é exigido, não lhes exigiu para o obter que pensassem profundamente sobre isto.
As soluções para este problema passam por reconhecer que há o problema, o que não é seguro que se reconheça. Depois, podem ser preparadas nos anos de formação se as escolas e os ateliers fizerem prevalecer uma ética arquitectónica e urbanística a todas as formas acidentais de uma estética do instante. Finalmente, se toda a educação seja de arquitectos, ou não seja, preparar o homem para uma iniciação e compreensão dos valores poéticos. Actualmente, a ausência da necessidade de símbolos conduz à ausência de uma intenção poética. Fica o esqueleto da poética, ou seja, a estética. E tudo não passa de sensações sem futuro.
O que é patente e notório é que é na arquitectura (noutro post juntamos-lhe como gémeo o direito) que os povos, as comunidades ou as pátrias se espelham. E quando não gostam do que vêem não deviam pensar só nisso que vêem mas no que tornou isso possível.

3 comentários:

Unknown disse...

Descobri hoje este blogue.
Bem interessante por sinal.
Voltarei mais vezes.
Abraço,

José Carreira
(www.cegueiralusa.com)

Unknown disse...

João Luis,
Obrigado pela pronta e interessante réplica. O contraponto que faz entre a ética urbanística e a estética do instante é uma forma inteligente e muito mais elaborada de colocar o problema que enunciei. Assim colocada a questão parece-me pois ser a de saber se pode haver ética urbanística sem que exista uma verdadeira comunidade.

Lourenço Cordeiro disse...

Acima de tudo o problema está na ausência de uma linguagem reconhecível que seja abrangente e, de certo modo, previamente aceite pela comunidade. Claro que uma linguagem não pode ser vazia e tem sempre de estar associada a uma voz que procure dizer alguma coisa inequívoca, voz essa que define o espaço público, que não pode ser o que sobra do espaço privatizado, o que conduziria a uma mediania cinzenta reduzida ao menor denominador comum. À luz do direito da propriedade privada, invocado pelo Pedro Norton, parece difícil de aceitar - e é - que se tenha de fazer concessões em nome de um superior e abstracto "interesse público", expressão que provoca alergia a qualquer liberal que se preze. A resposta a este problema foi dada pelo próprio Pedro e passa sempre por uma sociedade civil organizada mais forte, realidade ausente do panorama português, que terá mais força quanto maior for a sua representatividade e mais legitimidade quando maior for a sua liberdade em relação ao Estado. Enquanto isso não acontecer, não consigo ver de que modo poderemos açaimar o gesto gratuito e fotogénico, que se alicerça, sempre, numa vontade de excepção que tem como ponto de partida uma presunção de falta de valor da envolvente. A ruptura é sempre o mais apelativo e a sua repetição continuada retira-lhe toda a pertinência. E a verdade é que falta à produção arquitectónica actual (tanto nacional como internacional) uma coerência de propósitos com força suficiente para definir um tempo. Ou, se quisermos, a sua incoerência será o que a caracterizará no futuro.