terça-feira, 2 de outubro de 2007

II. Pierre Duhem, Sauver les apparences. Sur la notion de théorie physique. Vrin, 2003

Vejamos então o que resulta do estudo sintético, mas cuidado, de Duhem e como cai como um castelo de cartas o dislate do homem público.

Galileu foi perseguido pela Igreja católica. Vejamos; só a partir de certo momento. Antes era protegido do papa. Razões pessoais e políticas levaram a esse desfecho, em que o contexto da Reforma Católica e das birras recíprocas entre Galileu e o papa se misturam. Mas a questão acabaria por ser anedótica, não fora isso mostrar a estratégia de propagandistas: contar metade da história, retirar do contexto. Imagine-se que o criminoso do Churchill bombardeou a Alemanha nazi. História que seria justa, se nos esquecêssemos de que a Inglaterra tinha sido antes fortemente bombardeada.

A escolástica de que falamos no século XVII é uma escolástica tardia, de tal forma que se torna quase injusto ligá-la à do século XIII. Quatro séculos se tinham passado entre o Aquinate e a Inquisição que acusa Galileu. Seria a mesma coisa que caracterizar a cultura do tempo de D. João II recorrendo a Eça de Queiroz.

A ligação entre a escolástica, o aristotelismo e o sistema ptolemaico é no mínimo caricata. A separação entre os cientistas e os filósofos, embora em termos muito próprios, existe muito antes da Idade Moderna. Os cultores da astronomia (porque é desta ciência que se trata, como antecessora da nossa actual física) nem sempre o eram da filosofia e vice-versa. Bem pelo contrário, a tendência geral foi sempre a de permanentes encontros, é certo, mas num contexto de evoluções paralelas. Os que cultivam a astronomia vêem a física (filosófica, digamos assim para simplificar) quando muito como um problema, mas não como o seu solo. Inversamente o mesmo se passa com os cultores da física.

A prática científica (astronómica) desde a Antiguidade, sobretudo a tardia, e ao longo de toda a Idade Média era sobretudo convencionalista. O que se compreende tendo em conta o pano de fundo religioso. Ou porque a ciência humana das coisas físicas era menor, ou porque a ciência humana é por definição falível, nunca podendo abranger todo o universo. Os convencionalismos do século XX sobretudo são reacções ao positivismo e em certa medida ao iluminismo. É um problema edipiano. Não uma luta de modernos ateus contra religiosos, mas luta de modernos (crentes, ou não) contra o laicismo determinista na ciência. É contra o pai que se revoltam e o pai não era religioso.

A visão medieval da ciência é assim em grande parte convencionalista. E compreende-se bem. A incerteza já foi descoberta há muito tempo. A nossa época não a inventou. A única novidade é a de ter passado a ser decisiva. Mas não por algo de novo que se adquiriu, mas por algo de antigo que se tirou. Quando o homem se instala em solo religioso não se assusta com a imperfeição da ciência humana. Só merece gritaria o que é desesperante. E só há desespero quando o solo é de construção meramente humana.

Foi a Renascença que começou a trazer à baila a natureza substantiva da ciência como algo de vital. A ciência torna-se autónoma porque se leva a sério, por vezes demasiado a sério, como verdade absoluta. O cardeal Belarmino chama a atenção para este facto. A Renascença reinventou as ciências mas igualmente envenenou-as de equívocos, a que ainda hoje em dia estamos a tentar dar respostas. É já durante a segunda metade do século XVI que se começa a colocar verdadeiramente o problema da oposição às Santas Escrituras como questão fundamental da relação com a ciência astronómica.

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