terça-feira, 23 de outubro de 2007

Como nunca se viu

Todos os dias as bichas intermináveis de adultos e adolescentes na Rua da Escola Politécnica sugerem o sucesso da exposição «O Corpo Humano como nunca se viu».
«Ver é saber» diz a promoção do evento que amanhã fecha as portas depois de ter deixado entrar mais de 150 mil pessoas que hoje saberão mais porque viram.
Em nove galerias temáticas puderam conhecer «de uma forma invulgar» os ossos, músculos e órgãos do corpo humano, tal como eles são, escalpados e embalsamados, exibindo o esqueleto e os sistemas nervoso, respiratório, digestivo, urinário, circulatório e reprodutivo. A iniciativa propõe-se ser «potencialmente pedagógica». E é, se assim virmos as coisas ou, recuperando a máxima da exposição, se assim soubermos as coisas.
Mas nem sempre ver é descernir.
Os corpos que ali se exibem são cadáveres de chineses miseráveis que ninguém reclamou. De quem serão os corpos então, se ninguém os reclamou? As autoridades consideraram que, tal como os objectos perdidos, os corpos são de quem os encontra. Sem apelo. Esticando argumentos podemos pensar que, pelo menos assim, são finalmente úteis; pelo menos assim, alguém repara neles.
Esquecem-se os princípios básicos da consideração pela liberdade individual, do decoro pelos que não têm voz, de honra que é devida aos mortos. À falta de cuidados que a sociedade terá votado estas pessoas em vida, soma-se a falta de respeito que lhes dedica depois de mortas.
Defendo a utilização de órgãos de cadáveres para transplantes nos vivos sem que para isso seja precisa uma autorização expressa, tal como a lei prevê. Mas prevê também, para cada um, a possibilidade de o recusar em vida, por escrito, se assim entender. Do mesmo modo louvaria os vivos que oferecessem o seu futuro cadáver como material «potencialmente pedagógico» para uma exposição deste género. O que não posso aceitar é a manipulação desventrada e exibida dos corpos dos miseráveis que ninguém reclamou.

2 comentários:

Sofia Galvão disse...

Pois é. Tudo remete para a própria ideia de pessoa. E, essa, remete-nos para quadros culturais ou para a própria axiologia das civilizações. Aqueles corpos são, ainda, pessoas? Porquê? E sê-lo-ão, pacificamente, aqui como na China? Foram escolhidos por serem miseráveis? Ou por serem chineses? Ou por serem ambas as coisas?
Pano para mangas a propósito deste "como nunca se viu"... Questões essenciais sobre o que somos, apenas porque nascemos. E, no entanto, questões estranhamente afastadas das preocupações quotidianas da maior parte de nós. Aliás, pergunto-me quantos desses mais de 150 mil terão sido interpelados pela concreta existência dos homens e mulheres cujas entranhas pedagogicamente exploraram. Pergunto-me quantos terão sentido o apelo da sua dignidade, agora tão despida de pele como de nome e memória. Enfim, pergunto-me quantos não estarão definitivamente toldados pela banalização da morte e da desgraça. Subliminarmente, dia a dia, todos os dias...

Inez Dentinho disse...

É verdade que a nossa raiz judaico-cristã nos compele a honrar os mortos nos seus corpos apesar de, sobretudo depois do Concílio Vaticano II, a questão da futura ressureição dos mortos no seu corpo ter sido clarificada.
Hoje cada vez mais se perde resistência à cremação dos mortos mas, se reparares, a família repete o cuidado de anunciar: «era este o seu desejo».
Não conhecemos os desejos dos Chineses nem a importância que têm na vida e na morte. A propósito, onde estão os seus mortos que vieram viver recentemente para Portugal?