III. Roger Scruton, England, Chatto & Windus
Se bem virmos, Scruton usa uma estratégia que é a mais banal para quem fala da Inglaterra, seja para a elogiar seja para a vilipendiar. Esta estratégia é de quádrupla distorção: do que é a cultura inglesa, do que é o mito francês, a cultura continental e o sabor do mediterrâneo.
Em primeiro lugar a distorção inglesa. Quem Scruton descreve não é o inglês de sempre, mas apenas um inglês pós-victoriano, eduardino, georgiano. Em boa verdade os victorianos estavam demasiado ocupados a criarem os valores vitorianos para se deixar guiar por eles. Foram as gerações seguintes que acreditaram nesses valores ao ponto de estar em perpétua revolta contra eles. Wilde, Shaw, Russell, Huxley, o grupo de Bloomsbury, os Webb são nesse sentido bem mais representantes do espírito victoriano que as gerações de meados do século XIX. O próprio exemplo de Shakespeare como o mais inglês dos escritores é discutível. Shakespeare é o oposto do victoriano. É carne, violência de sentimentos, exposição e desnudamento do ser humano, intimidade, revolta, agitação, fúria, paixão, desmesura e retorno ao equilíbrio.
Em segundo lugar, e como é tendência histórica desde sempre, a Inglaterra define-se, não tanto em relação à França, mas em relação ao mito francês. Se até ao século XVIII a Inglaterra se define sobretudo em relação à França (a língua inglesa é em fortíssima percentagem de origem francesa, ou de expressão latina importada de França, os reis de Inglaterra usaram as flores de lis no seu escudo e chamaram-se de reis de França durante séculos) a partir da Revolução Francesa passam-se a definir-se em função não do que a França era, mas dos mitos que a França produziu. O sector em que mais se via esta tendência é o da política. Scruton salienta o lugar comum de a Inglaterra não ter Constituição escrita. Mas o que não sabe salientar é que foi dos primeiros países a ter documentos escritos de onde constavam reconhecidamente algumas das leis fundamentais do reino, como a Magna Charta ou o Bill of Rights. E isto bem antes da França. Se a França sentiu anta necessidade de ter alguma escrita é porque não tinha tantas quanto a Inglaterra. O inglês não se define por oposição ao Sacro Império, nem sequer a Roma, mas sobretudo em relação a França. Este tique revela-se igualmente na ênfase que dá na tradicional independência da Igreja inglesa, esquecendo-se que o galicanismo francês foi tradicionalmente o mais poderoso da Europa.
A terceira é a distorção da sociedade continental. E isto nota-se nomeadamente por duas vias. A natureza supostamente guerreira do continente por oposição ao pacifismo inglês, e uma suposta ideia transbordante e desregrada da nobreza continental. Dizer que a Inglaterra era mais pacífica que o continente é expressão algo curta. A Inglaterra esteve até ao século XVII pelo menos, integrada totalmente no círculo europeu. A ideia de mera potência de equilíbrio europeu surge a partir do século XVIII e sobretudo no século XIX. A Inglaterra faz guerra à Irlanda, à Escócia, ao País de Gales, mas a Inglaterra faz também guerra à França, ao Sacro Império. Henrique VIII pensou ser imperador do Sacro Império. Nada mais central na ideia europeia que isso. E nada mais afastado da ideia da intervenção britânica apenas para manter o equilíbrio europeu. Uma segunda distorção em relação à cultura continental é a descrição que faz das regras nobiliárquicas. No continente, afirma, todos os filhos de conde são condes, ao contrário da parcimónia inglesa. O continente seria assim dado à sobreabundância, ao desregramento, à desmesura. Vejamos. Não se pode opor nesta matéria a Inglaterra ao continente. Scruton fala do que não sabe. Refere-se apenas à tradição germânica, esquecendo-se que todas as outras são bem diversas. Portugal é bem mais parcimonioso na concessão de títulos, e o sistema inglês herdou essa parcimónia... da França. Só no século XVII se expandiram em França os “titres de courtoisie”, mas cuja designação já diz alguma coisa sobre a sua validade. A Espanha apenas expandiu a titulação com a sua ligação aos Habsburgos e ao ducado de Borgonha. E em muitos países europeus o desprezo pelo título (como na antiga nobreza portuguesa) é a ainda maior que em Inglaterra.
Finalmente a distorção do sabor mediterrânico. Perante a distância britânica opõe-se a exuberância mediterrânica, afirma Scruton. É obnubilar o que o próprio Scruton reconhecer entrelinhas. O inglês do século XVI e XVII era exuberante e apaixonado. E encontramos no Mediterrâneo zonas de muito maior distanciamento que em Inglaterra. A etiqueta aristocrática peninsular é a mais exigente ao ponto de a corte de Viena falar na etiqueta espanhola sempre que queria referir a mais exigente. As sociedades tradicionais da Córsega, Sicília, Puglia, Campânia para já não falar do transmontano rural são marcadas por um distanciamento que quase roça o hieratismo em certos casos.
Em primeiro lugar a distorção inglesa. Quem Scruton descreve não é o inglês de sempre, mas apenas um inglês pós-victoriano, eduardino, georgiano. Em boa verdade os victorianos estavam demasiado ocupados a criarem os valores vitorianos para se deixar guiar por eles. Foram as gerações seguintes que acreditaram nesses valores ao ponto de estar em perpétua revolta contra eles. Wilde, Shaw, Russell, Huxley, o grupo de Bloomsbury, os Webb são nesse sentido bem mais representantes do espírito victoriano que as gerações de meados do século XIX. O próprio exemplo de Shakespeare como o mais inglês dos escritores é discutível. Shakespeare é o oposto do victoriano. É carne, violência de sentimentos, exposição e desnudamento do ser humano, intimidade, revolta, agitação, fúria, paixão, desmesura e retorno ao equilíbrio.
Em segundo lugar, e como é tendência histórica desde sempre, a Inglaterra define-se, não tanto em relação à França, mas em relação ao mito francês. Se até ao século XVIII a Inglaterra se define sobretudo em relação à França (a língua inglesa é em fortíssima percentagem de origem francesa, ou de expressão latina importada de França, os reis de Inglaterra usaram as flores de lis no seu escudo e chamaram-se de reis de França durante séculos) a partir da Revolução Francesa passam-se a definir-se em função não do que a França era, mas dos mitos que a França produziu. O sector em que mais se via esta tendência é o da política. Scruton salienta o lugar comum de a Inglaterra não ter Constituição escrita. Mas o que não sabe salientar é que foi dos primeiros países a ter documentos escritos de onde constavam reconhecidamente algumas das leis fundamentais do reino, como a Magna Charta ou o Bill of Rights. E isto bem antes da França. Se a França sentiu anta necessidade de ter alguma escrita é porque não tinha tantas quanto a Inglaterra. O inglês não se define por oposição ao Sacro Império, nem sequer a Roma, mas sobretudo em relação a França. Este tique revela-se igualmente na ênfase que dá na tradicional independência da Igreja inglesa, esquecendo-se que o galicanismo francês foi tradicionalmente o mais poderoso da Europa.
A terceira é a distorção da sociedade continental. E isto nota-se nomeadamente por duas vias. A natureza supostamente guerreira do continente por oposição ao pacifismo inglês, e uma suposta ideia transbordante e desregrada da nobreza continental. Dizer que a Inglaterra era mais pacífica que o continente é expressão algo curta. A Inglaterra esteve até ao século XVII pelo menos, integrada totalmente no círculo europeu. A ideia de mera potência de equilíbrio europeu surge a partir do século XVIII e sobretudo no século XIX. A Inglaterra faz guerra à Irlanda, à Escócia, ao País de Gales, mas a Inglaterra faz também guerra à França, ao Sacro Império. Henrique VIII pensou ser imperador do Sacro Império. Nada mais central na ideia europeia que isso. E nada mais afastado da ideia da intervenção britânica apenas para manter o equilíbrio europeu. Uma segunda distorção em relação à cultura continental é a descrição que faz das regras nobiliárquicas. No continente, afirma, todos os filhos de conde são condes, ao contrário da parcimónia inglesa. O continente seria assim dado à sobreabundância, ao desregramento, à desmesura. Vejamos. Não se pode opor nesta matéria a Inglaterra ao continente. Scruton fala do que não sabe. Refere-se apenas à tradição germânica, esquecendo-se que todas as outras são bem diversas. Portugal é bem mais parcimonioso na concessão de títulos, e o sistema inglês herdou essa parcimónia... da França. Só no século XVII se expandiram em França os “titres de courtoisie”, mas cuja designação já diz alguma coisa sobre a sua validade. A Espanha apenas expandiu a titulação com a sua ligação aos Habsburgos e ao ducado de Borgonha. E em muitos países europeus o desprezo pelo título (como na antiga nobreza portuguesa) é a ainda maior que em Inglaterra.
Finalmente a distorção do sabor mediterrânico. Perante a distância britânica opõe-se a exuberância mediterrânica, afirma Scruton. É obnubilar o que o próprio Scruton reconhecer entrelinhas. O inglês do século XVI e XVII era exuberante e apaixonado. E encontramos no Mediterrâneo zonas de muito maior distanciamento que em Inglaterra. A etiqueta aristocrática peninsular é a mais exigente ao ponto de a corte de Viena falar na etiqueta espanhola sempre que queria referir a mais exigente. As sociedades tradicionais da Córsega, Sicília, Puglia, Campânia para já não falar do transmontano rural são marcadas por um distanciamento que quase roça o hieratismo em certos casos.
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