terça-feira, 23 de outubro de 2007

Quando o que parece não é


As referências são importantes. Muito mais importantes do que se julga. Assumidas como verdades subliminares, condicionam quase tudo.
Ora, neste caso do BCP – ou mais exactamente do crédito e do perdão da dívida a Filipe Jardim Gonçalves – , o que impressiona é, sobretudo, a completa implosão das referências. O mundo de pernas para o ar. De repente, ou talvez não.
Jorge Jardim Gonçalves passava por exemplo de probidade. Disso fez, aliás, o seu principal activo público, como gestor e banqueiro. Sempre foi visto – e sempre quis ser visto – como homem de irrepreensível virtude, temente a Deus e bom pai de família. Contudo, da noite para o dia, este paradigma da exigência e do escrúpulo é visto na sua fraqueza mais miserável, favorecendo um filho, sem cerimónia ou pudor, à custa dos interesses dos accionistas – interesses de que era, estatutariamente, primeiro e último guardião.
Por mais que se queira, a história não permite uma leitura benigna. A concessão do crédito foi ilegal, o perdão também. A decisão, à hora da saída, revela a frieza e a pré-determinação. No entretanto, a fazer fé no que foi publicado, a gestão da negociação no ‘inner circle’ de supranumerários do Opus Dei, entre advogados e quadros bancários, não acrescenta transparência nem facilita a remissão. Paralelamente, e neste contexto esconso, o alegado tratamento diferenciado à conta caucionada do sócio do dito filho não disfarça o pior.
Já em pleno circo mediático, não há o mais pequeno vislumbre de desmentido. Mas a dívida é paga. Fica o ruído. E, surdo, fica o pai também.
Enfim, um episódio lamentável. E gravíssimo pelo que, sem remédio, escancara. Desde logo, a evidência de que os factos radicam na convicção de que a decisão de considerar a dívida incobrável era possível – possível, no estrito sentido de que, assumindo-se discreta, jamais viria a ser revisitada ou questionada. Depois, numa inextrincável conexão de sentido, a certeza de que, efectivamente, tudo isto poderia ter ficado por sindicar – não fosse uma virulenta luta de poder intestina e ninguém (accionistas incluídos) suspeitaria sequer do assunto. Finalmente, a forte probabilidade de não se tratar de um caso isolado e espúrio, mas de tudo isto corresponder a uma praxis de facilidades e amiguismos continuados que converte os escândalos em meros epifenómenos.
Mas, nesta história, para além do núcleo do drama, muito mais se joga. E outras referências ameaçam ruir. Sem darmos por ela, pode bem ser um dominó.
No fundo, todos intuímos o essencial: nada disto foi divulgado em obediência a um indeclinável dever objectivo de denúncia, fosse ele estatutário, moral ou cívico. Não. Os factos foram noticiados no rescaldo de uma vitória – e, portanto, de uma derrota – na disputa pelo controlo da gestão do BCP. Só então. Mas é manifesto que, ocorridos há anos, seriam do conhecimento de um universo alargado de protagonistas, designadamente daqueles que se degladiaram ao longo dos últimos meses. Ou seja, os actuais denunciantes – como, porventura, muitos dos actuais indignados – souberam e calaram. Omitiram a verdade para poderem usá-la quando isso se revelasse mais conveniente à defesa dos seus interesses – ou quando causasse maior estrago à parte contrária, o que pode não ser muito diferente.
Não há, pois, escuteiros nesta história. É uma história de meninos crescidos e com muitos meninos maus. A ver vamos o que dá.
Para que as nossas referências – ainda aquelas que ensinamos aos meninos pequeninos – não se baralhem completa e inexoravelmente, importaria acreditar que o Banco de Portugal e a CMVM vão investigar tudo e retirar dos factos todas as devidas consequências (convicção que vacila com as declarações de Vítor Constâncio, aparentemente apostadas em circunscrever o caso à mera decisão de concessão do crédito). Do mesmo modo, importaria que os accionistas do BCP tivessem a força e a determinação necessárias para repor a idoneidade da instituição, apurando a verdade até ao mais ínfimo detalhe e refundando aí o seu futuro. Por fim, importaria que existisse um escrutínio sério e objectivo no espaço público, chamando os bois pelos nomes, seguindo as evoluções da história para lá das excitações editoriais, retirando as lições que se imponham, exigindo que tudo não fique afinal na mesma.
Numa palavra, depois disto, não vale a pena desmascarar farisaísmos, imposturas e oportunismos passados se tal redundar, apenas, na lógica e na agenda de outros fariseus, outros impostores e outros oportunistas. Porque, se assim for, o que parece continuará a não ser… Nesse cenário, teríamos, apenas, mais do mesmo: exemplos pouco exemplares, referências falsas ou trocadas e muita, muita hipocrisia.

2 comentários:

Anónimo disse...

O Prémio Nobel da Economia de 1991, Ronald Coase, publicou em 1937 um artigo intitulado “The Nature of the Firm” em que explica, entre outras coisas, que um dos motivos da criação de empresas é o de fugir ao mercado. Isto é, um fabricante de automóveis cria uma empresa para que o departamento da portas vá buscar parafusos ao departamento dos ditos e não tenha de os comprar numa loja na rua. As empresas são caixas negras, como alguém já disse aqui. E isso é bom. Mas também implica que tenham de ser vigiadas e reguladas. A ideia de que as empresas se gerem incondicionalmente por valores e princípios superiores aos do demais cidadãos tem consequências negativas, pois pode levar a uma menor “procura” de regulação e de controle das ditas. No fundo, somos todos iguais. E nesta história do BCP, parece – sublinho parece, pois não sei – que os reguladores, isto é, o Conselho Fiscal, o Banco de Portugal e as Finanças, não estavam suficientemente atentos.

Inez Dentinho disse...

Concordo totalmente com o diagnóstico mas sugiro o mais puro fariseísmo para a cura.
Como nas famílias que se querem grandes e continuadas, importa que o BCP fale claro para dentro e reproduza para fora uma imagem forte, se quiser continuar a existir.
O Mundo espreita o seu insucesso com tanta exigência como telhados de vidro. Espanhóis em particular e europeus no quadro alargado, não hesitariam em maquilhar esta «tristíssima distracção» se o mesmo acontecesse nos seus maiores bancos.
A mulher pecadora dispõe-se a morrer na espera da pedras. A que sobrevive só salva a face através de um micro acto de contrição que não lhe comprometa o destino. Nunca me imaginei a sugerir hipocrisias como receita de sucesso. Mas,neste caso, parece-me a única forma de não transformar a brecha num estilhaço.