domingo, 5 de agosto de 2007

A propósito do ‘caso Dalila Rodrigues’

Quase tudo foi escrito e dito. Tentei ler e ouvir. Até as derivações inusitadas de alguma opinião que me habituei a considerar e respeitar…
Por mim, em rigor, não tenho nada de decisivo a acrescentar sobre o caso. Não conheço toda a história, não conheço os pormenores, não conheço as pessoas. Poderia, evidentemente, raciocinar com base na minha própria pré-compreensão dos factos, assumindo as premissas de que partiria. Desde logo, a presunção legítima de não tomar uma respeitada professora catedrática, com nome, obra e carreira, por pessoa imatura, leviana e irresponsável, capaz de desrespeitar, com ligeireza, e movida por uma qualquer ânsia de protagonismo, o quadro de actuação institucional aplicável ao exercício das suas funções. Como também a presunção, igualmente legítima, de reconhecer no actual Governo e na Ministra da Cultura uma investida metódica contra aqueles que não identificam como instrumentos obedientes e anódinos das suas políticas e do seu modo de estar na vida pública. Poderia, mas não vou fazê-lo.
É claro que estou profundamente convencida de que o afastamento de Dalila Rodrigues é uma perda imensa para o Museu Nacional de Arte Antiga e para a nossa prática museológica. É claro que vejo neste caso mais uma trágica intervenção da Ministra da Cultura, depois de ter sacrificado o Centro Cultural de Belém às conveniências do Comendador Berardo e de anunciar vir a privilegiar o fogacho constituído pelo acordo com o Ermitage à construção de soluções sérias para refundar (e sanear) a rede de museus nacionais. Mas, muito mais do que isso, interessa-me o fundo da questão, o que aqui é subliminar e profundo. Mais do que o caso, interessa-me o que se pode perceber e discutir a pretexto dele.
Afinal, o real problema foi a evidência de se estar perante alguém com uma opinião sobre as coisas. Uma opinião sobre as suas funções e o sentido do que fazia. Pior, alguém capaz de expor essa opinião e de se bater por ela. Com coragem, com frontalidade e em voz alta (desgraçadamente para o Governo, e ao contrário do que foi escrito por alguns, sem quebra dos deveres de lealdade ou de obediência, já que a dita opinião surgiu no quadro da discussão formal de regimes orgânicos e modelos de gestão, sempre referenciada à defesa dos interesses do MNAA).
O pecado foi, portanto, esse. Dalila Rodrigues deveria ter olhado para o seu mandato como para um emprego. Ou um tacho. Pacato, discreto, silencioso, resignado, agradecido. Um emprego ou um tacho sossegados, bem comportados e nada mais. Nunca deveria ter ousado um projecto. Jamais uma visão. Nunca deveria ter-se imposto objectivos. E nunca, nunca poderia ter tido o topete de propor um caminho para lá chegar…
E este é o nosso problema. Muito mais sério do que geralmente se pensa, porque profundamente entranhado no nosso modo de estar e de pensar.
Nós não educamos – e não fomos educados – para o pensamento crítico. Culturalmente, não valorizamos o argumento ou a discussão das ideias. Em paralelo, e por decorrência, não promovemos o confronto, o debate, a dialéctica da diversidade. Consequentemente, sem darmos por isso, não nos formamos na defesa veemente de coisa nenhuma. E, ao mesmo tempo, não aprendemos a assumir responsavelmente os êxitos e os fracassos a que tenhamos dado causa.
O estilo ‘português suave’ vem de há muito. E faz-se de pequenino, em cada um de nós. Aliás, cedo se descobrem os talentos deste caldo luso: o menino que se senta na primeira fila e dá graxa ao professor, o menino que não empresta a bola, o menino queixinhas, o menino sonso, o menino intriguista, o menino mentiroso, o menino da mamã (claro que há meninas para cada um dos ditos meninos, algumas mesmo muito promissoras…). Estes meninos encantadores, de geração em geração penhor do país que somos, costumam ser adultos bem enquadrados e sucedidos: singram nas empresas, na função pública, na política, na vida em geral. O segredo do êxito é o seu perfil, subserviente, disponível, calado, passivo, elástico. Os que chegam mais longe são, em princípio, os mais hábeis nas artes da dissimulação e da manipulação, sempre adequadamente tergiversantes, envolventes, imprescindíveis e dúcteis. De entre todos, destacam-se os bajuladores e sabujos a quem estão reservadas as mais cobiçadas glórias mundanas. Estão por todo o lado. Em cada vez maior número e com um sucesso crescente. O sinal é inequívoco: é esta gente que se quer, é esta a gente que a sociedade reconhece e premeia.
O regime também. Por isso, os convites para o exercício de cargos públicos dirigidos a pessoas de excelência, em nome dessa excelência, devem ser entendidos nos seus devidos termos, isto é, numa lógica de pura instrumentalização. Não se espera – e não se admite – que tenham opinião ou projecto. Contudo, porque são quem são, assume-se subliminarmente que dirão o que for necessário dizer e, portanto, que se nada disserem é porque nada haveria para ser dito. Ou seja, impõe-se-lhes o silêncio para, depois, se retirar uma leitura desse silêncio. E, evidentemente, decorrendo do silêncio um aval tácito das políticas, credibiliza-se o sistema. Reconheça-se que não está mal pensado…
O pior é mesmo o país. Na iniciativa privada e, por maioria de razão, no serviço público, Portugal como projecto precisa de gente capaz de opinião. E precisa do exercício livre e responsável do direito à opinião. Senão, será tudo apenas uma espécie de…

6 comentários:

Anónimo disse...

Sofia,
Tiro-lhe o meu chapéu. No meio de tanto disparate, finalmente alguém diz como as coisas são realmente.

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Exacto. Quer-se a excelência para mostrar em silenciosa vitrine e depois não se percebe que essa excelência existe exactamente porque não é submissa.

Os pequeninos não percebem que a crítica é inerente à lealdade. Preferem o esbirro obediente, mesmo que este mais não seja que um oportunista.

Nuno Lobo Antunes disse...

Apesar de tudo, apesar de tudo...há nesta história algo que me deixa desconfortável. Se a Directora do Museu, tinha para este, uma visão nas antípodas do programa da "tutela", porque não se demitiria ao apreciar essas diferenças? é plausivel que alguém com posição tão distinta permanecesse no cargo, se tivesse sido reconduzida? então não teria o carácter para dizer."diferenças profundas no que entendo dever ser a orientação do Museu não me permitem continuar no cargo", ou quereria, apesar de tudo, prosseguir uma política com a qual estava em desacordo? ou afinal as divergências eram de pouca monta, ultrapassáveis e a não recondução foi um equívoco?
Não sei o suficiente sobre o caso para o julgar inteiramente, e não sou o Professor Cavaco Silva que nunca se engana, mas admito, em teoria, e não estando "por dentro" do caso concreto, que se fosse responsável por um Ministério, tivesse tomado a mesma atitude, não por me incomodar a crítica ou a opinião divergente, mas porque sendo responsavel por um projecto, difícilmente poderei esperar que ele resulte se os executantes nele não acreditarem, ainda que tenham enormes e reconhecidos méritos. Julgo que importaria discutir não tanto a não nomeação de uma pessoa, mas as diferentes visões que levaram a essa cisão. Que méritos e deméritos tem cada um dos projectos?
Quanto à Teoria Geral que a Sofia com tanta "verve" ilustra, difícilmente estaria em desacordo...

Madalena Lello disse...

Poucos meses depois de Dalila Rodrigues estar à frente do MNAA, li num jornal uma entrevista em que energia e vontade de concretizar novos projectos para o museu me deixaram uma excelente impressão.
Não me enganei. Dalila, ao contrário de tantos outros não se acomodou dizendo como tantos outros dizem que não podia concretizar os projectos porque as verbas recebidas do MC não chegavam."Arregaçou as mangas" e trabalhou para o conseguir. Conseguiu que o BCP fosse o mecenas do MNAA, porque apresentou um projecto para o museu, de contrário não o receberia. Todos têm sempre muitas ideias...Mas atenção o dinheiro tem de passar pelo IMC, optimo para o IMC, assim divide com o Soares dos Reis. Há dias Dalila numa entrevista refere que foi ela que organizou o mecenato, e que o próprio BCP escrevera uma carta ao IMC preocupado com o facto de lhe terem sido retiradas condições, eu acredito no que diz Dalila.
Num único ponto a gestão do Estado assemelha-se à gestão particular, acha que não tem que dar satisfações a estranhos.
Não me espantei que Dalila fosse demitida. Há uns meses atrás numa outra entrevista, Dalila criticava a gestão do IMC, não me enganei quando na altura pensei, ela vai ser demitida...antes me enganasse...Parabêns pelo texto.

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

Faço minhas as palavras do primeiro anónimo.

Tudo isto é triste mas, pelo lido, manifesta esperança há de não ser inexorável fado. Valha-nos isso.

Mas que é triste, muito triste, isso é.

Sofia Galvão disse...

Pois é, Alexandre. Aí está um tópico estimulante: a crítica como expressão da lealdade ou, talvez mais perto ainda do que dizes, a crítica como imperativo de lealdade.
Mas também isso - ou a percepção disso - supõe toda uma outra utensilagem mental. Também isso se ensina, também isso se aprende, também isso se exercita. Desde pequenino, de preferência.
Estes valores de relação traduzem uma certa visão do mundo e dos outros e, a partir dela, uma determinada atitude perante a vida.
Numa perspectiva que lamentavelmente não é a nossa, a lealdade obriga... E a lealdade impõe a verdade.
A crítica construtiva, objectiva, rigorosa consubstancia um indeclinável dever funcional. Pelo que deve ser recebida com naturalidade e abertura.
De pequenino se deve aprender a criticar e a ser criticado. Para crescer, melhorando, corrigindo, construindo.
Lamentavelmente, para nós tudo isto é estranho. Ao silêncio apenas preferimos a lisonja. Mas a crítica, essa, vimo-la sempre como um intolerável ataque.
O resultado está à vista - um país estreito, feito à medida de gente tíbia. Sem golpe de asa, enredado na falsa segurança das coisas indiscutidas.
Falta-nos a coesão criadora de quem se inventa e desafia no exercício da liberdade crítica.