segunda-feira, 4 de junho de 2007

The Clockwork Orange

A evolução das neurociências, designação que alberga um conjunto de disciplinas que conjuntamente trabalham com o intuito de desvendar os meandros de funcionamento do nosso cérebro, tanto ao nível neuroquímico, genético, molecular, farmacológico, nas suas vertentes de aplicação médica e cirúrgica, de análise psicológica e comportamental e finalmente também do ponto de vista ético e moral tem sofrido um desenvolvimento impressionante nas últimas décadas. Aquilo que se avizinha poderá ser ainda muito mais portentoso, com consequências sociais que começamos agora a descortinar. A isto aludia o post do Nuno Lobo Antunes de há algumas semanas atrás. Aí se levantava o véu relativamente a alguns indicadores de que vamos dispondo, que apontam para a existência de um determinismo e dependência do nosso ser em relação à máquina que o move, o cérebro, bastante maior do que poderíamos até há algum tempo sequer supor.
Este estado de coisas implicaria assim uma nítida redução do nosso tão prezado espaço de manobra individual, a liberdade e o livre arbítrio, podendo acarretar como consequência última uma situação de potencial desculpabilização do indivíduo em relação aos seus actos.
Levado este argumento às últimas consequências estaremos perante um cenário em que, quando alguém mata, rouba, viola, mente, canta, compõe, pinta ou esculpe, ama ou odeia, o faz não em liberdade mas sim como virtude de uma resposta pré condicionada e a que não pode escapar, que se desencadeia como resultado de um determinado naipe de estímulos, externos mas também internos.
O Homem não é então mais do que uma máquina de uma enorme perfeição dotado de um hardware intrincado que lhe é fornecido sem escolha por via genética e que passa a ser responsável por tudo o que de bom e de mau ele produzir.
Se por um lado alguma verdade, por incómoda que possa parecer a alguns, escorre visivelmente destes argumentos também é certo que nos encontramos numa fase ainda demasiado incipiente para que possamos anunciar estes princípios de forma redutora.
Ainda que a demonstração deste determinismo prossiga, a mesma não poderá sobrepor-se ao edifício moral e ético que nos rege, ele mesmo produto deste mesmo hipercondicionalismo. O saber que alguém errou como causa de uma determinada predisposição e condicionante genéticas não pode sistematicamente levar à diluição das responsabilidades muito menos à sua inimputabilidade. Em tese tal só seria admissível no momento em que a ciência permitisse o conhecimento de todos os botões do teclado humano e, assim sendo, todas as acções potencialmente nefastas do ponto de vista ético-moral pudessem ser preventivamente eliminadas. O catch 22 consiste no entanto no facto de que mesmo aquilo que temos como mal ou bem também não foge à regra do próprio determinismo e muito menos uma eventual vontade de eliminar de vez um ou outro padrão de conduta...
É de antever no entanto que alguma mudança nos padrões morais e éticos se venha a dar de forma lenta e cautelosa. Para o bem ou para o mal ninguém pára o Homem, e a pesquisa científica não é mais do que a demonstração da sua aguçada curiosidade, ela mesmo determinada genéticamente, uma atitude aliás que a meu ver tem também algo de religioso se quisermos utilizar o termo como procura das causas últimas e da nossa transcendência.

3 comentários:

Diogo disse...

Um bom exemplo de análise psicológica e comportamental é a reportagem na TV Blogo - André Azevedo Alves do Insurgente, um bloguer apostado num marketing de sucesso.

«AQUI»

Nuno Lobo Antunes disse...

Caro Manuel:
Como o disseste muito melhor do que eu seria capaz!
No entanto, a forma como amo e me emociono toca o (meu)transcendente, tal como as cantatas de Bach. Talvez, de facto, o que é a imagem e semelhança de Deus não seja a máquina, mas o que ela consegue produzir, da mesma forma, que é mais admirável a luz, que a lãmpada que a produz. Nada mal para um agnóstico...

manuel cunha e sá disse...

Meu Caro Nuno:
Estou contigo!
A grande sedução do cérebro é esta sua capacidade para construir edíficios de pensamento de uma tamanha elaboração da razão a ponto de passarem a possuir vida própria para além daqueles (cérebros e seus donos) que os produziram. Concordo em absoluto contigo. É exactamente aqui que se cruzam os caminhos das divindades. O agnóstico contenta-se assim com esta glorificação do individuo e com estas suas insuperáveis capacidades.