Democracia de rupturas: Governos e CML
A convulsão política portuguesa dos últimos tempos, contruída com base em impulsos, acasos, desencontros, favorece um quadro apto à construção de maiorias que mais se afirmam por expedientes político-judiciais e habilidades politico-constitucionais, do que pela avaliação dos créditos das políticas pensadas e aplicadas no terreno, ao fim de mandatos de quatro anos . O mapa político transforma-se num tabuleiro em que as regras da democracia cedem ao imprevisto legalizado.
O eleitor, consultado depois do estrago, tende a refugiar-se na doca mais seca - com a naturalidade dos inseguros - sem questionar a natureza da intempérie que lhe toldou as velas. Podem, depois, os vencedores dizer que foram chamados à missão de resgate dos náufragos que os confirmam com o seu voto agradecido.
Falo do que se tem passado, desde Dezembro de 2001, no Governo e na Câmara Municipal de Lisboa, cujo enquadramento político depende de uma colecção de rupturas impulsivas que afectam do sentido de responsabilidades do ciclo democrático e o rumo dos acontecimentos.
- 1º impulso: saída de Guterres a meio do mandato (Dezembro de 2001)
- 2º impulso: saída de Durão Barroso, no dia em que obteve o pior resuldado eleitoral de sempre entre o PSD e o CDS (Europeias de 13 de Junho de 2004)
- 3º impulso: saída de Ferro Rodrigues da liderança do PS, em colisão com o íntimo Sampaio, no dia em que soube que o PR não convocaria Eleições Legislativas, (o que pesaria no escrúpulo do Supremo Magistrado) (Julho 2004)
- 4º impulso: carta de demissão de Henrique Chaves (Novembro 2004)
- 5º impulso: dissolução da AR, com maioria estável, por Jorge Sampaio, poucas horas depois de pedir a remodelação governamental (Novembro de 2004)
- 6º impulso: na ânsia de evitar as candidaturas de Valentim e Isaltino, Mendes improvisa o argumento anti-arguido. Desvirtua o espírito da Lei e inaugura a dependência do poder político em relação ao poder judicial (Verão de 2005)
- 7º impulso: Carmona rompe a coligação com o CDS por desacerto de um nome para a SRU da Baixa-Chiado (Outono de 2006)
- 8º impulso: Saídas dos Vereadores Carrilho e Nogueira Pinto - o 1º por enfado a 2ª por desgosto com um grupo (também impulsivo) no Conselho Nacional - 15 dias antes da «atenção» judicial sobre os vereadores da maioria e do Presidente da CML. (Novembro de 2006 e Fevereiro de 2007, respectivamente)
Nada tenho contra impulsos ditados pela defesa do bem comum ou pela exigência da honradez. Mas esta série, tão continuada, ligeira e politicamente consequente, desencadeia uma desfocagem das regras da Democracia e tende a premiar os que estão no lugar certo, na hora certa, aptos a capitalizarem a insegurança que, por vezes, instigaram. Esta análise desfaz - porventura injustamente - nos créditos de quem herda as situações maduras. Mas ela decorre de um dos efeitos preversos na lei das rupturas provocadas. Há outros: perder o poder é difícil de aceitar. A saudável alternância democrática não é fácil de encaixar entre quem sai vencido depois de servir com esforço ou, simplesmente, depois de ter experimentado o poder. Mas sentir que o poder foi «roubado» gera um movimento pessoalizado, justiceiro, revanchista que também não favorece as ideias nem o combate democrático.
Os discursos de Carmona e os seus índices elevados nas sondagens são disso exemplo. O desgosto de Santana pode gerar frutos nas sementes amargas do passado recente. Nogueira Pinto ressurgirá. Monteiro não desiste de ressurgir. Portas já o fez. Marcelo destila, devagar, a perda abrupta, de forma metódica e criativa.
Sócrates aproveita o destempero dos vencidos pelo artifício. Sem atenção ao interior do País, de onde veio, nem ao exterior Oceânico para onde deveria ir. Cede na Europa e cala os diplomatas que o alertam para os perigos do novo Tratado. Faz da presistência um crédito raro, que o é, enquanto dura a intempérie. Mas como termina Luciano de Canfora no seu livro recente, «A Democracia, História de uma Ideologia»: «A história (...) ensinanos que toda e qualquer ruptura violenta, mais tarde ou mais cedo, se recompõe».
7 comentários:
Oportuno memorando, Inês!
O que preocupa no corropio (um pouco à italiana mas sem pertencer ao G7) é que um país pequeno e a distanciar-se das médias da Europa, integrado numa Europa que por sua vez luta contra um mundo "novo " que a vai superando e fazendo velha, devia olhar para si e pensar-se com ambição e objectividade, traçar um rumo e segui-lo com persistência e em unidade nacional. Mas, infelizmente, estamos espartilhados por partidos que ferem Portugal nas suas lutas e desunem os portugueses. Como se, enquanto portugueses, não tivéssemos uma razão de ser e um orgulho, uma identidade e um destino. Vivemos em democracia num espírito anti-democrático e em que um dos mais evidentes sinais de que até os partidos não suportam a democracia, é a incapacidade de intervir no espaço político sem a constante e infernal diabolização do outro. Como se o que um partido defende é bom e o que os outros defendem fosse mau. Como se uns fossem os arautos da verdade e do bem e os outros uns assaltantes bárbaros e mefistofélicos. Nada mais paradoxal para quem se diz democrata.
Voltámos, ou não saímos, do "quem não está comigo está contra mim". O orgulho do chefe só.
O elenco “de impulsos” que a Inez nos descreve é esmagador. Confesso que, paradoxalmente, simpatizo com alguns (ou mesmo com todos?). É como se, apesar de tudo, por mais díspares que sejam as motivações, na lista dos oito disparatados e insuportáveis impulsos que ela apresenta, o factor humano prevalecesse. O que me custa (ou voluntariosamente não quero) aceitar, nalgumas teorizações tendencialmente dominantes sobre a actual democracia portuguesa, é a ideia de uma premeditação grupal e granítica que perverte e desfoca as regras da liberdade que conquistámos. Ou seja, não quero ser obrigado a concluir, como conclui o João Luis Ferreira, que “infelizmente, estamos espartilhados por partidos que ferem Portugal nas suas lutas e desunem os portugueses”. Em suma, gostava de poder continuar a pensar que, de Guterres a Maria José Nogueira Pinto, o que ditou as boas ou más decisões de cada um foi essa pequeníssima “mancha” humana que infecta as nossas vidas, chamemos-lhe, como eu lhe chamo, vontade, ou chamemos-lhe como outros lhe chamam, “máquina biológica”. O que, nunca por nunca, me apatece acolher é a ideia de que, para fazerem o que fizeram, Barroso, Carmona ou Carrilho integravam um vasto projecto a que, por facilidade de comunicação, teríamos de chamar “eixo do mal”.
Entendamo-nos: a minha incoência quanto aos princípios em nada afecta a certeza de que a impulsiva "bondade" de um gesto não acarrete um pacote infernal de consequências.
Manuel, esse receio de criticar os partidos pode tornar-se inibitório de pensar livremente o modelo de existência política. Se bem ler o que escrevi, não ponho em causa o "factor humano" que desejaria mais disponível. O que se verifica é que se aceitarmos sistematicamente a degradação da vida política podemos acabar por contribuir para a destruir. Não tenha dúvidas que o facto dos principais partidos só quererem governar com maiorias absolutas é um sinal do mal estar da co-existência. Isso é que é estranho e paradoxal. Além disso Manuel, os "impulsos bondosos" com consequências infernais para os outros, como V. diz, chama-se irresponsabilidade.
Acredite, João, que tenho todos os motivos para lhe dar razão, o que -se eu aderisse à crítica maximalista dos partidos - me facilitaria até o quotidiano convívio social.
Mas, sem pretender inibir uma desejável intervenção cívica, vale a pena mitigar um pouco os juízos a quente e sobretudo as generalizações feitas de um ponto de vista "permanentemente exterior". A acção política é presente e "interior" relativamente ao sistema; é circunstancial e é sempre (em democracia, sobretudo) condicionada. Hipótese minha, bastante absurda e pateticamente inocente: fora dos partidos e fora da acção política, será que as personagens visadas no post da Inez e nos nossos comentários não subscreveriam facilmente os nossos pontos de vista? Em contrapartida, será que, obrigados à acção, nós não caíriamos, por imperativo do paradigma que determina problemas e soluções, nos erros degradantes que agora detectamos?
Então, Manuei, é deixar andar. Se são irresponsáveis, nós também seríamos; se criticamos, estamos a comentar a quente; por imperativos de paradigma somos todos iguais; todas as acções presentes e "interiores" tornam-nos a todos igualmente condicionados e, por isso, circunstancialmente comprometidos; por isso, ninguém pode divergir, ninguém tem legitimidade para criticar. Ou estarei a ver mal?
Perceba que, neste particular, não estou a criticar o sistema partidário, mas a verificar as consequências autofágicas dos seus procedimentos e de uma certa licenciosidade dissolvente.
Não, não, João, não está a ver nada mal: viu mesmo muito bem. E fiquei deliciado com "as consequências autofágicas dos meus procedimentos", a que acresceria uma sensível tendência para uma "licenciosidade dissolvente". Ou seja, o João tirou as ilações lógicas decorrentes de uma posição que proponha a paraplegia da crítica. Experimente tirar, com similar lógica, as ilações de uma posição que, em absoluto, se coloca do "exterior" do sistema. O que talvez seja mais fácil se agarrar no permanente discurso crítico de, por exemplo, alguém como o Francisco Louçã.
Seja como for, agradeço-lhe que me tenha levado a sério, a mim que nesta área específica, a da análise política, há muito abdiquei. De vez em quando, muito de vez em quando, há uns relâmpagos a que presto atenção e admiração. Exemplos: a vontade de acção de Aznar, de Blair, do Sócrates anterior à engenharia, e agora a do mais gaullista do que parece Sarkozy. Ou seja, a bissectriz desses arrufos amorosos, a que acresce a admiração pelo primeiro governo de Cavaco, coloca-me num irremediável e acrítico centrão, como bem pode ver. Um lamentável e desglamourizado senso comum, se quiser.
Impressiona. Impressiona verdadeiramente. Em oito impulsos, pesa-nos o passado recente… A leviandade no seu esplendor. Um vazio grotesco. A táctica auto-justificada. Mas, pior do que tudo, a irresponsabilidade. Com tanto para fazer, com tanto a desafiar-nos, continuamos a promover (ou a aceitar, o que é ainda promover) a mais medíocre e inconsequente prática política. É o império do fátuo, do fácil, do instantâneo. Do improviso e do impulso, em versões falhas de rasgo.
O verdadeiro drama é que, há muito, nos falta o projecto. O sentido que mobiliza e irmana. O horizonte que exalta. O objectivo que convoca.
Se existisse projecto, o improviso seria criador. E o impulso emularia as vontades. Poderia haver sonho. E esperança de lá chegar.
Talvez se recuperasse a dogmática do velho direito à felicidade e talvez se fizesse radicar aí uma tábua de valores fundadores. Então, embora sempre contingente, talvez a acção política recuperasse princípios e honra, razões intemporais da construção da democracia.
Nesse cenário, haveria referências e uma lógica. O que mudaria tudo. Porque a exigência seria completamente outra. As proezas tácticas seriam, como sempre foram, o tempero da disputa política. Mas haveria espaço para as propostas sérias, o debate vivo e plural, a sindicância crítica. Paulatinamente, ir-se-ia consolidando a consciência cívica e, a partir dela, a perspectiva de um futuro mais justo.
Pena que o sonho seja sonho apenas. Pena que não possa acreditar-se nessa essencial virtude política. Pena que os velhos paradigmas condicionem já de tal modo a própria inteligência que nos rendamos à fatalidade de assumir que tudo só depende do lado em que estamos, como se a realidade fosse apenas a representação de quem olha. Pena que não nos deixem acreditar na possibilidade de ser diferente, de fazer melhor e de querer mais. Pena que não nos deixem ousar.
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