domingo, 15 de abril de 2007

O planeta de Euler

Que alegria, ver alguém escrever sobre Matemática! Obrigado, Alexandre. Ficaria moralmente em dívida se não atropelasse os meus timings e deixasse de escrever HOJE, dia em que se completam três séculos sobre o nascimento do maior matemático de todos os tempos.

Leonhard Euler (1707-1783) foi muito provavelmente o maior génio matemático de todos os tempos. Foi indiscutivelmente o matemático mais produtivo de sempre, em quantidade e qualidade. Publicou mais de 850 artigos científicos, bem como muitas dezenas de livros, nas grandes Academias de Ciências da época, em todos os ramos da Física e da Matemática do seu tempo. Na verdade, há ramos inteiros da Física e da Matemática (no século XVIII a distinção entre estas ciências é difícil; a Matemática é criada à medida dos problemas físicos tratados) fundados por Euler, da Teoria Analítica de Números à Dinâmica de Fluidos, e ainda hoje ensinados nas Universidades de todo o mundo como ele os abordou.

Não existe nada na história da Ciência que se assemelhe remotamente à inacreditável produtividade de Euler. Uma boa medida desta produtividade é a seguinte: aquando do segundo centenário do seu nascimento, em 1907, foi constituída na Suíça a Comissão Euler, encarregada de organizar a publicação das obras completas de Euler, a chamada Opera Omnia. Tarefa titânica: cem anos, 76 volumes e 30.000 páginas depois (cada volume tem entre 300 e 600 páginas), a publicação das obras completas de Euler ainda não está concluída!

A vida científica de Euler foi um permanente dilúvio matemático. Durante as seis décadas da sua vida adulta, mesmo em circunstâncias muito difíceis, Euler concebeu, descobriu e escreveu Matemática a um ritmo muito superior àquele que pode ser sequer lido por um ser humano. Só se pode contemplar uma obra de tal forma esmagadora com um grande sentimento de humildade e quase incredulidade.

Euler viveu aqui.

Em termos de qualidade científica, Euler foi por um lado um cientista universal – trabalhou em todos os grandes problemas da Física e Matemática da sua era – e, por outro lado, tudo aquilo que produziu revela uma capacidade de penetração para além de qualquer ser humano antes ou depois dele.

Euler fez um oceano de contribuições fundacionais para o Cálculo diferencial e integral, equações diferenciais ordinárias e parciais, Teoria de Números, Geometria, Álgebra, Mecânica de partículas, Hidrodinâmica, Astronomia, Topologia e Teoria de grafos.

O espírito genial de Euler transformava pedras em ouro matemático. Por exemplo, a Teoria de grafos nasce, nas mãos de Euler, de um problema de salão que lhe foi colocado em S. Petersburgo e de que provavelmente o leitor já ouviu falar – as pontes de Königsberg. E o Sudoku que jogamos hoje é um pequeno exemplo de construção de objectos cuja teoria Euler fundou em 1782, os quadrados latinos, a propósito do problema dos 36 oficiais (que se diz ter-lhe sido proposto por Catarina, a Grande, czarina da Rússia).

Geralmente um grande cientista fica imortalizado por uma contribuição central na sua carreira: a Gravitação de Newton, a Lei de Gauss, a Hipótese de Riemann, a Relatividade de Einstein. Mas, se um matemático referir no abstracto o “Teorema de Euler”, ninguém poderá sequer saber de que ramo da Matemática está ele a falar, tal a abrangência do seu legado científico.

Observe-se a quantidade de descobertas científicas com o seu nome que ainda hoje se ensinam nas Universidades de todo o Mundo. Os ângulos de Euler na dinâmica do corpo rígido. As equações de Euler-Lagrange no Cálculo de Variações. Os integrais de Euler. A característica de Euler. A função de Euler φ(n). A constante de Euler. As equações de Euler da Mecânica dos Fluidos. A linha de Euler de um triângulo. Os produtos de Euler (mais famoso dos quais o da função ζ, mais tarde chamada “de Riemann”, mas que deveria ter também o nome de Euler). A fórmula da soma de Euler-Maclaurin. A fórmula de Euler para os números complexos. E assim por diante... esmagador.

“O” Teorema de Euler não existe. Euler foi grande demais para se identificar por um resultado. Lagrange, o seu único aluno, ele próprio matemático de primeira categoria, escrevia aos seus contemporâneos “Leiam Euler, leiam Euler! Ele é o Mestre de todos nós”. Já agora, o número de descendentes científicos (alunos de alunos de alunos...) de Euler é 37735.

Euler nasceu perto de Basileia, na Suíça, em 1707. Em 1726 a czarina Catarina I, viúva de Pedro o Grande, convida Euler para integrar a recém-criada Academia das Ciências de S. Petersburgo. Lá ficará até 1741, altura em que (já tendo perdido um olho) parte para Berlim, onde integrará a Academia das Ciências de Frederico II. Lá ficará um quarto de século; nessa altura, já considerado o maior cientista europeu, decide voltar para S. Petersburgo, onde prossegue a sua prodigiosa actividade científica. No entanto sofre em 1771 um rude golpe que terminaria a vida produtiva de um ser humano normal: perdeu o olho esquerdo, ficando assim quase totalmente cego.

Mas Euler não parecia deste Mundo. Ao que se diz, terá declarado “assim tenho menos distracções”. E tinha razão: inacreditavelmente, quase metade da sua produção científica (mais de 400 trabalhos) data desa segunda estadia em S. Petersburgo. Trabalhava com assistentes, um dos quais seu filho, e tinha um quadro gigante no seu escritório, onde escrevia em letras enormes que mal conseguia ver.

A sua memória era prodigiosa; conseguia realizar cálculos intricadíssimos dentro da cabeça e ditava-os aos seus assistentes. Além das centenas de memórias científicas, assim escreveu livros sobre Álgebra, Cálculo Integral ou Óptica. Neste período a sua produtividade científica média era de um artigo por semana!

A 18 de Setembro de 1783 Euler estava no seu escritório a trabalhar sobre a órbita de Urano, recentemente descoberto. Sofreu então um acidente vascular cerebral – uma morte rápida e indolor. Ficou a sua monumental obra, cuja publicação ainda hoje está por terminar.

Se a Literatura teve Shakespeare e a Música teve Mozart, a Matemática teve Euler. Euler é um dos seres humanos que nos eleva acima do plano mortal, e com quem nos sentimos honrados de partilhar o mesmo planeta.


Dedico um capítulo do meu novo livro, "O fim do mundo está próximo?", a Euler.

3 comentários:

Paulo C. Rangel disse...

Só para dar nota do gosto e do gozo que me deu ler este post, onde a matemática faz e se faz história. Jorge, pode dar-me as referências do seu livro?

Sofia Galvão disse...

Tenho-me posto a pergunta, vezes sem conta. Mas, na verdade, e a sério, nunca a pus a ninguém... Quando se ensinará, nas nossas escolas, história da ciência? Não seria interessante estimular, tão precocemente quanto possível, a proximidade com as coisas da ciência? Talvez mais importante ainda, não se fundaria, aí, uma desconhecida naturalidade na relação com a linguagem e os temas científicos?
Um dos meus primeiros fascínios conscientes - descoberta a meio caminho entre a história e a ciência, precisamente - aconteceu em torno de uma biografia de Thomas Edison, lida em pequenas doses, perante uma turma ávida, tarde após tarde, numa qualquer primavera de colégio de há mais de trinta anos. Nunca esqueci.
Mas, depois disso, valha a verdade, só em casa pude repetir a experiência. Na escola, até optar por caminhos humanísticos, nunca mais a ciência me foi contada... Tudo era apresentado de forma esparsa, num ritmo entrecortado pela estrita lógica curricular, sem transcender a abstracção árida de fórmulas, equações e teoremas, jamais revelando as vidas e as personagens que explicavam intuições e progressos.
No fundo, houve sempre uma distância que nunca se venceu, uma aridez que nunca se temperou.
Terá que ser assim? Não será possível entusiasmar crianças e adolescentes a pretexto de Leibniz, Euler ou Einstein?
Post Scriptum - Reconheço que o exercício tem pano para mangas... No fundo, no fundo, não deveria o ensino da literatura apostar na história da literatura? E não deveríamos aprender, desde pequenos, história de arte?, ou história da música?... Não seríamos adultos mais felizes, mais completos, mais capazes?

Jorge Buescu disse...

Caro Paulo: ainda bem que lhe deu gozo! Espero, passe a publicidade, que o que encontrar no livro lhe dê ainda mais. A mim deu-me imenso gozo a escrever. Só não lhe posso oferecer um exemplar porque só sai em Maio; o título improvável de "O fim do Mundo está próximo?". Mas terei imenso prazer em o convidar para o lançamento.

Cara Sofia: não tem de ser assim... pelo contrário. A Ciência é uma longa aventura da espécie humana, cheia de avanços e recuos, becos sem saída, duelos de capa e espada (mesmo! estou a pensar em Galois), traições, grandezas, mesquinhezes... enfim, sendo feita por seres humanos partilha de tudo o que de bom (e mau) eles têm. Ensinar assepticamente os factos da Ciência sem referir esta dinâmica é como achar que mostrar a geografia da Terra num mapa-mundi é ensinar a História dos Descobrimentos...