sexta-feira, 6 de abril de 2007

A escolha de uma profissão

Há uns anos atrás, por circunstâncias várias na minha vida, foi-me dada a possibilidade de ir para os EUA fazer a especialidade médica que abraçara, a Neurocirurgia. Casado de fresco e muito ligado à vida que levava em Lisboa, aos serões com os amigos em intermináveis conversas ou em fadistices diletantes, ao convívio com a minha família mais próxima, ou aos hábitos sedimentados em anos de longas e estimulantes férias correndo mundo fora à aventura, aquela mudança na minha vida representava uma verdadeira revolução.

Tinha ido a Nova Iorque uns meses antes para uma entrevista no Departamento de Neurocirurgia que se propusera aceitar-me por um período de um ano em regime experimental, escudado nas referências que sobre a minha pessoa tinham sido dadas e, claro está, na ilusão de que as minhas qualidades me pudessem valer o suficiente para pelo menos não deixar mal quem generosamente tinha interferido e atestado a meu favor.
Aqueles dias foram para mim de importância capital e abriram-me os olhos para uma realidade que até então desconhecia mas pela qual intimamente de há muito almejava.
Fui recebido de forma extremamente cortês e aberta sem no entanto qualquer contorno de falsa intimidade ou cumplicidade. Eu ia, foi-me explicado, simplesmente preencher o lugar de um interno americano que, coisa inédita, por motivos pessoais tinha desistido do seu lugar, conseguido a muito custo após um encarniçado sistema de classificação (ranking/match) a nível nacional. O departamento para onde eu ia era na altura e provàvelmente, o mais cotado nos EUA para aquela especialidade e o nível das pessoas que nele ingressavam era assustadoramente alto.
Depois de um 'tour' pelas instalações do serviço e do hospital, fui entrevistado pelos vários especialistas do departamento, alguns dos quais eu conhecia já de nome pelos artigos e capítulos de livros de texto que assinavam nas publicações da especialidade e que, como tal, se revestiam para mim de uma aura muito especial.
A conversa foi sempre clara e directa, tentando apurar os meus interesses e o meu empenho e dedicação por uma área tão exigente como aquela que eu demandava.
Este processo correu, pensei eu, de forma satisfatória tanto mais que me pareceu bem encaminhada a minha aceitação. No entanto o compromisso era apenas por um ano, período esse de que eu disporia para, não só desempenhar imaculadamente e com abnegação e afinco as tarefas que me caberiam como elemento mais junior do serviço, como também de, assim procedendo, tentar demonstrar que a minha continuação naquela instituição e naquela equipe se justificava pelo período restante de anos de que eu desesperadamente necessitava para completar o meu treino de especialidade.
Terminadas as entrevistas com os especialistas do serviço fui então entregue à equipe de internos de especialidade, meus pares nos anos que se seguiriam, e que, tal como os especialistas, tinham uma palavra a dizer sobre o candidato que pretendia integrar aquela legião de gladiadores. Sempre vestidos dos famosos 'scrubs' os fatos de bloco operatório que, mal suspeitava, iriam constituir a minha indumentária e farda quase única nos anos seguintes, levaram-me a almoçar no respeitável e vetusto Faculty Club do Hospital e da Universidade. Logo me apercebi que uma das razões, se não a principal, de tal cortesia residia no facto de que semelhantes ocasiões em que visitantes havia no Departamento, constituiam uma oportunidade imperdível de se poder almoçar e, assim fazendo, escapar por uma escassa hora às infindáveis tarefas que esmagavam aqueles pálidos seres vestidos de azul.
Mais uma vez a conversa foi estimulante e esclarecedora. Os meus pares não conseguiam contudo entender por que razão alguém com verdadeiro juízo estaria disposto a trocar uma vida que pela descrição lhes parecia bastante aprazível e com um lugar conquistado nesta mesma especialidade no seu país de origem, pela certeza de pelo menos um ano de verdadeira tortura e sofrimento (you will lick the floor if asked to do so...) sem sequer obter a garantia de permanência pelo tempo total de especialidade. Mesmo os muitos pontos altos do serviço e a preparação imbatível que o mesmo proporcionava a quem por lá completasse o seu treino, se lhes afiguravam insuficientes para justificar gesto tão temerário. Confesso que voltei para casa angustiado, sobretudo pelo pavor de não conseguir corresponder a semelhante desafio, tanto mais que já tinha de antemão decidido aceitar o repto. A aposta era alta.
Voltei para Lisboa e três meses depois desembarquei em NYC desta vez para ficar. Instalei-me em casa de um amigo que para lá tinha ido em condições semelhantes e que voltava á Pátria roído de saudades. Herdei dele a casa e o estafado carro e com estes dias começou uma amizade que perdura e que muito estimo, uma razão mais para acalentar boas memórias destes tempos.
Uns dias depois começava aquela que iria ser a minha rotina, levantava-me em plena noite às 4h45m, a tempo de chegar ao hospital e passar a visita aos cuidados intensivos antes das seis da manhã. Nos dias em que não ficava no hospital as 24h ( o que acontecia pelo menos de 3 em 3 dias) chegava a casa também já de noite por volta das 20h completamente esgotado. Nos primeiros dias a tarefa afigurou-se-me sobrehumana tanto mais que me eram estranhos todos os circuitos e hábitos de trabalho e até mesmo as siglas e designações que pululam no ambiente médico, e cujo desconhecimento faziam de mim um verdadeiro desvalido. Foram uns dias terríveis que se passaram com a solidariedade mas também com a exigência implacável dos meus pares.
Assim teve início a minha experiência de trabalho fora de Portugal, caldeada numa solidariedade inquebrantável entre pares, num espírito de total dedicação, de constante competição mas também de respeito mútuo que constituiram para mim uma experiência fundadora.
Hoje, muitos anos depois, à frente de um serviço de Neurocirurgia e de volta a Portugal, vejo surgirem-me pela porta candidatos a internos que escolhem os serviços sem nunca terem tido a curiosidade de sobre eles inquirirem ou mesmo de os frequentarem, num processo que lhes não permite poderem contar com um cenário estável e ordenado de ano para ano. Noto também com alguma tristeza que, mesmo nesta fase precoce das suas vidas profissionais, em que todos os minutos contam para a obtenção de uma preparação que quanto mais sólida fôr tanto mais auspiciosa se revelará para os seus futuros, não raramente as suas preocupações se desviam deste objectivo.

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