São Tomás de Aquino em turismo
Tenho andado em estudo do «De Veritate» de São Tomás de Aquino. Por razões múltiplas, o meu estudo da filosofia medieval foi intermitente, não importa aqui quais. Mas, sempre que a ela volto, percebo até que ponto a nossa época macaqueia a filosofia medieval sem a conhecer.
Os lados da questão são conhecidos. De um lado, os que vêem São
Tomás de Aquino como um iluminado e nada mais há que fazer senão seguir as suas
fórmulas. Deste lado favorável outros insistem na dimensão existencial do
pensamento tomista. Esta segunda versão só espanta quem faz a destrinça entre a
dimensão conceptual e a existencial na vida, o que quer dizer que as têm ambas
pobres.
De outro lado, os que dizem que o pobre coitado do São Tomás
não conseguia destrinçar a filosofia da teologia, ou então oscilam a acusá-lo
do maior obscurantismo, do enfado ou ainda de, apesar de lhe reconhecer a
inteligência, ter tido o problema de ter nascido antes de nós e por isso não
ser banhado da mesma luz redentora que nós (uma visão religiosa que não
diz o seu nome...).
Da minha parte vou visitá-lo como turista, ou seja, de forma
fresca, mas dando valor a coisas que os especialistas esquecem e os ignorantes,
coerentes como são, ignoram.
Pertenço a uma geração que foi obrigada a nadar na palavra
dialéctica, tanto quanto a desconhecia. Era um adjectivo necessário para passar
em exames, e como todas as gerações colectivamente são no fundo submissas, a
imensa maioria dos meus colegas a usavam como uma palavra mágica. Tinha um
efeito: permitia passar de ano. E outro: para os mais afoitos permitia ter boas
notas.
Mas a prática da dialéctica implica ter presentes ao mesmo
tempo várias vozes, substantivas, viventes, opostas. Para vidas espirituais
suportadas por escasso caudal, que esforço inglório ficcionar que a água pode
irrigar vastos campos.
Ser aberto aos outros é um dos mantras enfadonhos da nossa
época. Aberto aos outros é geralmente quem de qualquer forma não tem estrutura.
Tão aberto que tudo o que entra sai da mesma forma. Da minha parte prefiro os
que abrem os outros, os que mostram nos outros o que nem eles mesmos são
capazes de mostrar. São Tomás despe sem pudor as ideias dos outros, poem-nas a
nu. Mostra o que são enunciando o que estava implícito. Mas mostra o que são,
não menos por mostrar no seu conjunto o que diriam se tivessem capacidade de
ter um pensamento sistemático. Se São Tomás mente é por tornar os adversários
mais inteligentes do que são.
Diálogo? Encontramo-lo sob o ponto de vista teatral em
Platão, dizem os antigos que não manifestamente inferior em Aristóteles. Mas dialéctica
sem noção de drama não existe, de qualquer forma. Antífonas, responsos em
liturgia podem ser uma forma velada de teatro. São Tomás tem mais dialéctica em
si que um mero observador da dialéctica, como tantos depois do século XIX. Se a
época gostasse realmente de dialéctica teria forçosamente de gostar do Doutor Angélico.
Também incensamos os heterónimos. Pessoa tê-los-ia inventado,
diz uma erudição provinciana. Bem antes de Pessoa, Kierkegaard, para quem o
conheça. A questão é que em Pessoa como em Joyce participa tudo de uma imensa
falta de sentido de humor, ou seja, de unidade. Em Kierkegaard esse sentido
cómico está sempre presente. É talvez um dos maiores pensadores do cómico que
já existiu. Se se pode dar ao luxo da comicidade é porque é profundamente
cristão, e percebe por isso o que o cristianismo tem de cómico. Um Deus
esvaziado e entregue por amor aos homens é visão cómica da realidade e por isso
mesmo intrigante.
São Tomás não precisa de teorizar o cómico de modo tão
intenso. Vive numa época em que o absurdo de um Deus sacrificado pelos homens é
duplamente evidente: no seu absurdo e na sua verdade. Não precisa lembrar do
que ninguém esqueceu. Por isso, não precisa de heterónimos. Faz tudo como se os
tivesse, coloca várias vozes a falar ao mesmo tempo, porque sabe que a alma é
complexa e não perde por esse facto a sua unidade. Não precisa, nem de invocar
o cómico, nem de o esquecer. Pertence a um tempo que faz catedrais obscenas e
peças satíricas. A sua época vive bem com o sentido de humor e o de unidade. Sabe
que são só um.
Que a sua capacidade de criar diálogos seja real não me
espanta. É um místico e um poeta. São sempre os pensadores mais profundos, o
que se despem desta sua riqueza e se podem dar ao luxo de ser realistas e
prosaicos. Os que o são por inevitabilidade nada mais podem despir, salvo se
nos quiserem dar desagrado.
O que importa é que um ateu que queira ser sofisticado
apenas teria de compilar as teses que São Tomás enuncia para as rebater, sem
ter em conta que são destruídas pelo santo. Os actuais ateus são maus citadores
do Doutor Comum. Usam apenas alguns dos seus argumentos quando teriam uma muito
maior escolha e poderiam dar uma imagem de sofisticação maior que a que têm.
Estreitos e amputados, querem fazer um mundo à imagem dos seus limites
intelectuais. É o que chamam de um mundo melhor. Melhor para eles porque mais à
sua medida e ao seu conforto.
Entendamo-nos. Não contesto a honestidade de alguns ateus,
nem a profundidade das suas objecções. Lutam contra um cristianismo paroquial. Mas
ignoram que, em certo sentido, luto contra ele bem mais eu que eles. A oposição
não é a entre os inteligentes e os estúpidos. Nem sempre. Muitas vezes temos de
perceber que objecções inteligentes são curtas e insuficientes e que muito
deixam por aprofundar. Um ateu não preguiçoso carece da leitura de São Tomás. Para
sentir uma repulsa bem legítima, porque sem o saber lhe seria purgativa.
As melhores anedotas sobre a Igreja Católica vi-as contadas
por católicos. Os ateus riem-se das religiões, sobretudo da única que vêem como
religião, a cristã. Mas raramente vi um ateu a rir-se do seu ateísmo, mostrando
até que ponto a sua posição pode ser ridícula. É esse estreitamento da vida que
os impede de defender em toda a sua glória o ateísmo. Teriam para isso de
sofrer com a leitura de São Tomás. E isso excede as suas forças espirituais. Por
isso, quando tentam colocar-se numa posição diversa da sua, começam pelo
heterónimo sem humor e acabam sem posição nenhuma.
O actual ateísmo é uma nota de pé de página da obra tomista.
Em vez de ter um pensamento sem limites, procura uma via redentora em dois ou
três tópicos. Congratula-se com a escuridão desde que esta seja democrática. Se
venho do esterco todos têm de vir. Não foi assim que começou o ateísmo. De
início herdou o ideal aristocrático da grandeza. Mas não percebeu que não o
conseguiria suster. O seu padrão é democrático. Todos vêm do lixo, no máximo
podem almejar ao conforto, não ao heroísmo. O actual ateísmo revela-se a si
mesmo como nudez chã.
Sem mística, sem poesia, acaba por ser sem pensamento. Obcecado
em ter razão, em que tudo é lixo, quer de tudo fazer lixo para se sentir
confirmado. Sem dialéctica, negando-se a ouvir outras vozes, outras opiniões.
Cego, surdo e mudo, como um deus Shiva vive de destruição e identifica-se com o
seu falo, já não biológico, mas simbólico. Porque para ele a biologia é apenas
sinal de ontologia, logo, de opressão. A biologia o fez, a biologia o desfaz. Parodiando
a redenção, é filosofia de imitação, própria para uma pequena burguesia
habituada a viver de sucedâneos. E por cima destas ruínas eleva-se São Tomás, que
desde a origem tinha razão, porque, ao menos ele, ouviu a razão dos outros.
Alexandre Brandão da Veiga
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