Devemos desprezar Mandela?
Dizer que a África do Sul se transformou num país corrupto e
violento, ou que perdeu importância relativa na economia africana não é
argumento. Muitos homens grandes deixaram bem menores depois da sua morte. Não
são os chefes menores da Academia que diminuem a grandeza de Platão. A questão
é bem diversa.
A nossa época diz-nos que devemos desprezar Mandela, Gandhi
e Martin Luther King. Di-lo, mas não sabe que o diz.
A resistência pacífica é algo de precioso? Não, diz-se hoje
em dia. Não foi Gandhi o criador da resistência pacífica, mas antes os mártires
de Córdova do século IX. Cristãos sob o domínio muçulmano revoltaram-se contra
ele. Com armas? Não. Saindo à rua e dizendo que eram cristãos. Como os trata a
historiografia liberal? Como provocadores que no fundo mereceram ter sido
mortos pela espada, e outros crucificados.
Alguém os invoca hoje em dia? Não. A resistência pacífica
não interessa ninguém hoje em dia. O importante é ter lutado contra os impérios
europeus. Os argelinos que castraram e mataram europeus são vistos como heróis,
tanto quanto Gandhi. A invocação da resistência pacífica é apenas um pretexto. Com
ou sem violência, alguém é bom apenas se se tiver oposto aos europeus. A
originalidade de Gandhi é assim nula, como mostrei, e irrelevante, como a nossa
época pensa, mas não diz.
Sim. A admiração por Gandhi destruída pela nossa época. Mas
Mandela, e Martin Luther King? A nossa época não os admira? A resposta é
negativa. Apenas lhes dá uma caução provisória, até arranjar outros que os
substituam.
Como posso afirmar isto? Como não percebo a admiração tão
sincera e tão proclamada em relação a eles?
Também aqui a demonstração é simples. Quando era criança
lembro-me bem de quem eram os heróis do humanitarismo. Florence Nightingale e
Albert Schweitzer. Eram sempre dados como exemplos máximos dele. E agora? Quem
cita Mandela, King e Gandhi nunca refere os primeiros. Porquê? É que se admira
o humanitarismo deveria não esquecer os grandes humanitários. E, no entanto...
A época quer mortos frescos, prontos a admirar. A substância
do que alguém fez, o seu mérito não tem importância. A sua admiração tem um
prazo de validade. É pela mesma razão que é indiferente aos mártires de
Córdova, a Florence Nightingale e a Albert Schweitzer que a sua aparente
admiração por novos heróis se mostra oca.
No século XXII irão admirar a Kakaká e o Lelelé e se alguém
lhes falar em Mandela vão mostrar a total indiferença que sentem por Mandela. A
sua admiração é de consumo, como um iogurte: caduca.
Nesse século XXII será o meu equivalente que lhes vai
lembrar Mandela e os mártires de Córdova. E lhes vai lembrar que, nada
admirando de perene, deixam a nu o vazio da sua admiração. E nessa altura quem
falar de Mandela vai ser desprezado. Precisamente: pelos defensores do
humanitarismo.
Eis como esta época me ensinou que Mandela, King e Gandhi
são desprezíveis. Porque só os admira sob a condição de os poder livremente
substituir na sua memória.
Alexandre Brandão da Veiga