terça-feira, 30 de janeiro de 2024

A questão judaica

 

 

 


Vamos por partes. Só vendo os vários efluentes podemos conhecer bem o rio. Bem sei que é tema perigoso. Os hábitos tribais e provincianos dos europeus transformaram em tabu a questão. Época estreita esta. Rasguemos um pouco os seus antolhos.

 

Primeiro curso de água: uma ou outra série de televisão, filmes de Hollywood, uns documentários e, para os que se julgam mais dotados, alguns livros. O holocausto foi um horror, o anti-semitismo um outro horror. Sem qualquer margem para reflexão. Num nível mais presunçoso há mesmo os que vão mais longe no tempo e dizem que o anti-semitismo é de origem cristã. Neste caso, e só quando tem defeitos, a nossa civilização deixa de ser por milagre judaico-cristã e passa a ser apenas cristã. Caprichos...

 

Este quadro acabou de vez com o anti-semitismo? É que se o diagnóstico fosse profundo e certeiro não teríamos dados largos passos no caminho da terapêutica? Uma árvore conhece-se pelos seus frutos. E os desta são escassos e de pouco alimento. O anti-semitismo pulula na nossa época.

 

Segundo curso do rio. Dois livros. Em 1844 um de Marx. Em 1944 um de Sartre. De comum um e outro: contra a ideia da Revolução Francesa do homem universal. O problema judaico só se resolve com o homem concreto na sua situação concreta. Esconder que há um judeu, em suma, esconder a essência (sim, a essência, os marxistas clássicos têm uma metafísica) é eludir o problema. Esta é a boa tradição marxista contra a visão burguesa do homem universal, a de Marx, a de Labriola e mesmo Sartre. 

 

Este segundo curso tem os seus méritos. Não é por o judeu ser integrado na cidade e tratado igualmente com os outros cidadãos que desaparece o problema judaico. Nisto os marxistas tinham razão. Não tinham o fetiche da lei. Ainda hoje em dia um ministro pode ser igual perante a lei mas de reles semblante visível a todos. A lei nada cura. E nisto o judeu não é diferente dos outros. A lei apenas nivela o que pode. Não destrói as desigualdades naturais. E é evidente que há graus de honestidade diversos. Labriola, o mais aberto, não pode ser comparado ao oportunismo de Sartre. Marx omite muito, mas ao menos não encobre com fórmulas mágicas como Sartre.

 

A outra corrente é a popular. E como tudo o que é de baixo nível faz encontrar os extremos pelo lado errado. Um dos extremos é o do filo-semitismo popularucho. O das séries de televisão e quejandos. Os judeus são vítimas, foram sempre vítimas e são credores eternos em relação ao resto do mundo. O outro extremo é o do anti-semitismo popularucho. Os judeus são eternos culpados façam o que fizerem. Entre turcos e muçulmanos em geral prevalece este movimento. 

 

Nem uma nem outra força acabaram com o anti-semitismo. Declarar que um povo é isento de pecado original é tão perigoso quanto afirmar que dele tem o exclusivo. Porque de uma forma ou de outra cria uma ligação especial entre esse povo e o pecado original. Teria sido bem mais sensato ver o que de trivial tem esse povo para se dissolver da trivialidade da História. O problema é que ninguém parece querer que seja trivial. Tanto quem gosta como quem não gosta. 

 

Uma outra corrente assenta numa dimensão algo intelectual, mas em modo menor. A do sionismo e do anti sionismo. Algo menor porque criada por intelectos bem inferiores a Marx ou Labriola. Por jornalistas políticos, para dizer tudo. Theodor Herzl é uma personagem bem curiosa, com todos os clichés contra os judeus - tanto ele como Sartre falam da fealdade dos judeus, e Sartre bem sabia de fealdade. O criador do sionismo não achava que o povo judeu fosse belo ou particularmente inteligente, mas queria um lugar seguro para ele. E conseguiu a simpatia do Kaiser Guilherme II da Alemanha e do rei da Itália. De certa forma quem mais banalizou o povo judeu foi quem mais efeitos obteve no longo prazo. O anti sionismo alimenta-se, enquanto mero anti sionismo e não mero disfarce do anti judaísmo da mesma ideia de que o povo judeu é banal.

 

Uma forma especial desta corrente popular é também dupla. A extrema-esquerda e o islamismo parecem ser completamente opostos. Afinal, a extrema-esquerda não odeia a religião? Sim. Odeia a religião. A única que consegue ver como verdadeira. A cristã. As outras são deliciosas expressões de outras culturas. Vazias de sentido, mas ao menos formas legítimas de existência. O que os une é muito mais. Um pensamento plebeu que nega toda a forma de aristocracia, uma obsessão com a violência verbal e física, com a expressão universal absoluta e ao mesmo tempo destruidora. Uma baixa origem e baixos intentos.

 

Sendo ambos filhos do folclore urbano tendem ambos a ficar satisfeitos com a ideia de que os judeus são todos capitalistas, actuando por detrás da cena. Não é por acaso que em países asiáticos como a Turquia o protocolo dos sábios de Sião faz desde há muitas décadas sucesso. Não tendo participado dos arcanos do poder acham que todo o poder é arcano. O que os separa é no fim absoluto e bem se sabe que num dia em que os islamistas tiverem poder os primeiros a ser mortos serão os de extrema-esquerda. Mas é o Estado liberal que permite a sua união. Precisamente por não permitir que se matem uns aos outros e esconder o facto de que essa é a história final. Triste comédia de enganos, como todas terminará em tragédia... ou farsa.

 

O fundo da questão judaica é eludido por quem detesta e por quem adora os judeus. A Europa é o único continente que corresponde a uma cultura. Não há uma cultura africana. Um egípcio não se sente irmanado com um quimbundo. Não há cultura asiática. Um turco e um chinês não têm a mesma cultura. A Europa era o único continente mono religioso. Toda a Europa era cristã até que há trinta anos se decidiu que devia ser multicultural.

 

A questão judaica na Europa só tem acuidade secular porque os judeus tradicionalmente são o único elemento de multiculturalismo na Europa. Irrelevantes sob o ponto de vista demográfico, e até ao século XIX irrelevantes sob o ponto de vista económico político e cultural. Não há sinagogas nas praças principais das capitais europeias, não há famílias reais judias, nem famílias nobres judias. As nobilitações do século XIX nunca geraram dinastias reconhecidas pela nobreza de sangue. E ainda hoje em dia a antiga nobreza inglesa, de origem franco-normanda não reconhece as raras famílias judias nobilitadas.

 

Enfim, longa demonstração a fazer noutro lugar. A questão no caso é outra. A questão judaica é o único sintoma secular multiculturalismo na Europa. Todos os sistemas multiculturais em todas as épocas em todas as civilizações foram de violência cíclica e de reserva mental. O que a Europa está habituada a pensar em relação aos judeus já a Hispânia muçulmana, os impérios árabe e turco e o sassânida conheciam em relação aos judeus e aos cristãos.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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