Maldito liberalismo II
Visão equívoca da escatologia,
que coisa quero dizer com isto? O problema da ortodoxia ocidental, ao contrário
da oriental, foi sempre o de ter evacuado a escatologia. Quando a comparamos com
os autores da patrística grega ou os teólogos russos, nestes há um traço contínuo,
o de que a escatologia tem um lugar central no cristianismo, nomeadamente por
via da «theosis», da divinização do homem.
Como a Europa Ocidental
sempre lidou pouco, e em geral de modo ténue, com a escatologia, salvo grandes
como São Tomás de Aquino, o terreno estava preparado para que surgissem muitos
movimentos que lidam mal com a mesma.
A premissa do liberalismo
é que nada podemos saber sobre os fins últimos. O juízo suspende-se e prefere não
ser aprendiz de feiticeiro quanto aos efeitos das nossas acções. Deixar ao mercado,
deixar à auto-regulação, a vida, é apenas consequência desta ignorância fundamental.
De um lado é sensato, de outro trata-se de mera evacuação de um problema. Não
nega a escatologia em boa verdade porque nem a sabe pensar. A sua recusa não
decorre de um conhecimento, mas de uma extraneidade, de um alheamento.
Lida mal com a
irreversibilidade. A realidade tende a equilíbrios. É verdade. Os sistemas tendem
a equilíbrios naturalmente. Mas a questão é que nos temos de perguntar a quem aproveitam
esses equilíbrios, que custos têm, o que é um equilíbrio. Neste aspecto, o liberalismo
nunca saiu da mecânica clássica. As equações funcionam da mesma forma em
qualquer das direcções do tempo. Se há mortos e feridos, doentes e oprimidos, ou
a natureza destruída como preço de um novo equilíbrio, isso não é tido em conta
no modelo liberal.
Em terceiro lugar, é etnocêntrico.
O liberalismo não teria de ser forçosamente etnocêntrico, pelo menos numa
primeira leitura. Posso construir um modelo liberal que incorpore diferenças culturais,
e que as tenha efectivamente em conta. Mas nunca os liberais o fizeram. Não ocorre
tal coisa por acidente. É que o liberal assenta na ideia da liberdade e presume
que o ser humano almeja a liberdade. Ora isso é verdade para este paradoxo permanente
que é a civilização europeia, que, desde sempre, antes de depois do
cristianismo, funda as sociedades num equilíbrio de ordem e liberdade.
Nos Orientes múltiplos,
seja o islão seja o chinês, o problema da liberdade nunca surgiu. Em turco e
árabe nem existia a palavra até ao século XIX, no sentido de liberdade
política, e só por influência europeia (diríamos, cristã?) a palavra surgiu. Durante
catorze séculos o islão viveu bem sem pensar a questão da liberdade, durante
muitos mais a China viveu em sequer o colocar nem no Tao nem em Confúcio (as civilizações
indo-europeias, como a indiana e a persa levantam questões mais complicadas).
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