quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Maldito liberalismo II






Visão equívoca da escatologia, que coisa quero dizer com isto? O problema da ortodoxia ocidental, ao contrário da oriental, foi sempre o de ter evacuado a escatologia. Quando a comparamos com os autores da patrística grega ou os teólogos russos, nestes há um traço contínuo, o de que a escatologia tem um lugar central no cristianismo, nomeadamente por via da «theosis», da divinização do homem.



Como a Europa Ocidental sempre lidou pouco, e em geral de modo ténue, com a escatologia, salvo grandes como São Tomás de Aquino, o terreno estava preparado para que surgissem muitos movimentos que lidam mal com a mesma.



A premissa do liberalismo é que nada podemos saber sobre os fins últimos. O juízo suspende-se e prefere não ser aprendiz de feiticeiro quanto aos efeitos das nossas acções. Deixar ao mercado, deixar à auto-regulação, a vida, é apenas consequência desta ignorância fundamental. De um lado é sensato, de outro trata-se de mera evacuação de um problema. Não nega a escatologia em boa verdade porque nem a sabe pensar. A sua recusa não decorre de um conhecimento, mas de uma extraneidade, de um alheamento.



Lida mal com a irreversibilidade. A realidade tende a equilíbrios. É verdade. Os sistemas tendem a equilíbrios naturalmente. Mas a questão é que nos temos de perguntar a quem aproveitam esses equilíbrios, que custos têm, o que é um equilíbrio. Neste aspecto, o liberalismo nunca saiu da mecânica clássica. As equações funcionam da mesma forma em qualquer das direcções do tempo. Se há mortos e feridos, doentes e oprimidos, ou a natureza destruída como preço de um novo equilíbrio, isso não é tido em conta no modelo liberal.



Em terceiro lugar, é etnocêntrico. O liberalismo não teria de ser forçosamente etnocêntrico, pelo menos numa primeira leitura. Posso construir um modelo liberal que incorpore diferenças culturais, e que as tenha efectivamente em conta. Mas nunca os liberais o fizeram. Não ocorre tal coisa por acidente. É que o liberal assenta na ideia da liberdade e presume que o ser humano almeja a liberdade. Ora isso é verdade para este paradoxo permanente que é a civilização europeia, que, desde sempre, antes de depois do cristianismo, funda as sociedades num equilíbrio de ordem e liberdade.



Nos Orientes múltiplos, seja o islão seja o chinês, o problema da liberdade nunca surgiu. Em turco e árabe nem existia a palavra até ao século XIX, no sentido de liberdade política, e só por influência europeia (diríamos, cristã?) a palavra surgiu. Durante catorze séculos o islão viveu bem sem pensar a questão da liberdade, durante muitos mais a China viveu em sequer o colocar nem no Tao nem em Confúcio (as civilizações indo-europeias, como a indiana e a persa levantam questões mais complicadas).


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