Espaços euclidianos II
De seguida espera um
leitor avisado que fale de Lobatchevsky, Gauss e Bolyai. Com alguma razão. Mas
a verdade é que a maior revolução na geometria não vem com eles, mas com Riemann.
E para se perceber o que de fundamental fez Riemann é preciso ver o que ele tem
de realmente profundo.
E mais uma vez, como
todas as revoluções, tem uma dimensão profundamente reaccionária, de retorno.
Riemann não fez uma geometria não euclidiana. Fez mais que isso: criou uma geometria
a-euclidiana. E como? Sendo euclidiano.
Vontade de paradoxo? Nem
por isso. O que faz ele? Diz duas coisas: o conceito de espaço não é geométrico,
mas físico; voltemos aos objectos.
Que o conceito de espaço
fosse físico e não geométrico, já Gauss o tinha dito. Mas Riemann insiste na
ideia. Não há espaços euclidianos ou não euclidianos na geometria. O espaço
físico é que pode, ou não, ter uma estrutura euclidiana.
Mas, mais importante,
Riemann volta a uma geometria objectual. Mas, em vez de se ficar pelas figuras geométricas,
cria o conceito de variedade. Para estes efeitos, irreleva o que seja uma variedade.
Chamemos-lhe de uma «coisa». Olhemos para esta «coisa», em vez de a embebermos
num espaço. Olhemos directamente para ela e vejamos quais as suas propriedades,
qual a sua consistência, as suas continuidades e descontinuidades (topologia) e
como se forma as distâncias nela (métrica). E nisto a análise infinitesimal é fundamental.
A grande revolução de
Riemann é assim o resultado de um retorno a Euclides, a uma geometria objectual,
com um elemento original a Riemann, a destrinça entre métrica e topologia, e a
análise infinitesimal que se deve a Leibniz e Newton. E o cálculo infinitesimal
é ele mesmo fruto do cristianismo, como demonstrei alhures. Assim resulta da
seguinte composição:
(Euclides)+(Riemann)+(Leibniz+Newton(+Cristianismo+Patrística)).
Se a geometria de Riemann
é euclidianamente agnóstica sob o ponto de vista métrico, é fundamentalmente euclidiana
sob o ponto de vista do seu enfoque objectual.
A que conclusões chegamos?
Que aqui, como em muitas outras áreas, as revoluções são retornos. Que é
precisamente o elemento reaccionário que as caracteriza. Por isso, a destrinça entre
revolução e reacção torna-se muito menos pertinente. Que as revoluções são
afinal muitas vezes superação de distinções. Em Riemann euclidiano e não euclidiano
torna-se destrinça muito menos importante, sendo apenas modalidades de um mesmo
problema (métrico).
Mais uma vez, como com Nietzsche
a dita modernidade, seja lá o que isso for, é fundada por quem contesta a sua ideologia.
Adivinho três questões do
leitor.
Porque razão o postulado das
paralelas levanta tantos problemas e parece dominar a questão? A verdade é que
o postulado das paralelas já levanta problemas desde a Antiguidade. O que
afirmam os historiadores da ciência é que não era visto como tão evidente como
os restantes. E porquê? Temos de o dizer claramente. Porque tem implícita a
ideia de infinito (a prolongação indefinida das rectas…). Para a geometria
euclidiana introduzir infinitos tinha sempre um elemento de desconforto. Por
isso a grande polémica ocorre no século XIX. É a mesma época que se separa da metafísica
cristã (ou se pretende separar mais do que se separou), que discute mais acesamente
a questão. É evidente. A questão surge por razões intrinsecamente matemáticas
também: tinham surgido alternativas consistentes à geometria euclidiana. Mas como
se compreende o furor da discussão dos que defendem a geometria euclidiana até
ao fim e como Cayley e Félix Klein vêem nas não euclidianas apenas uma forma
das projectivas? A centralidade e o calor da discussão dizem algo mais do que a
questão simplesmente matemática poderia dar a entender.
Porque não falo de
questões um pouco mais actuais, como os esquemas e os topos de Grothendieck,
como generalização do conceito de variedade os primeiros, e a superação entre
uma geometria objectual e contextual os segundos? Fá-lo-ei. Mas só quando tiver
algo de jeito a dizer a propósito.
Para que serve tratar
destas questões no espaço público? Para apanhar o pensamento plebeu nas suas
ratoeiras.
Alexandre Brandão da
Veiga
(mais)