segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Espaços euclidianos II




De seguida espera um leitor avisado que fale de Lobatchevsky, Gauss e Bolyai. Com alguma razão. Mas a verdade é que a maior revolução na geometria não vem com eles, mas com Riemann. E para se perceber o que de fundamental fez Riemann é preciso ver o que ele tem de realmente profundo.

E mais uma vez, como todas as revoluções, tem uma dimensão profundamente reaccionária, de retorno. Riemann não fez uma geometria não euclidiana. Fez mais que isso: criou uma geometria a-euclidiana. E como? Sendo euclidiano.

Vontade de paradoxo? Nem por isso. O que faz ele? Diz duas coisas: o conceito de espaço não é geométrico, mas físico; voltemos aos objectos.

Que o conceito de espaço fosse físico e não geométrico, já Gauss o tinha dito. Mas Riemann insiste na ideia. Não há espaços euclidianos ou não euclidianos na geometria. O espaço físico é que pode, ou não, ter uma estrutura euclidiana.

Mas, mais importante, Riemann volta a uma geometria objectual. Mas, em vez de se ficar pelas figuras geométricas, cria o conceito de variedade. Para estes efeitos, irreleva o que seja uma variedade. Chamemos-lhe de uma «coisa». Olhemos para esta «coisa», em vez de a embebermos num espaço. Olhemos directamente para ela e vejamos quais as suas propriedades, qual a sua consistência, as suas continuidades e descontinuidades (topologia) e como se forma as distâncias nela (métrica). E nisto a análise infinitesimal é fundamental.

A grande revolução de Riemann é assim o resultado de um retorno a Euclides, a uma geometria objectual, com um elemento original a Riemann, a destrinça entre métrica e topologia, e a análise infinitesimal que se deve a Leibniz e Newton. E o cálculo infinitesimal é ele mesmo fruto do cristianismo, como demonstrei alhures. Assim resulta da seguinte composição:

(Euclides)+(Riemann)+(Leibniz+Newton(+Cristianismo+Patrística)).

Se a geometria de Riemann é euclidianamente agnóstica sob o ponto de vista métrico, é fundamentalmente euclidiana sob o ponto de vista do seu enfoque objectual.

A que conclusões chegamos? Que aqui, como em muitas outras áreas, as revoluções são retornos. Que é precisamente o elemento reaccionário que as caracteriza. Por isso, a destrinça entre revolução e reacção torna-se muito menos pertinente. Que as revoluções são afinal muitas vezes superação de distinções. Em Riemann euclidiano e não euclidiano torna-se destrinça muito menos importante, sendo apenas modalidades de um mesmo problema (métrico).

Mais uma vez, como com Nietzsche a dita modernidade, seja lá o que isso for, é fundada por quem contesta a sua ideologia.

Adivinho três questões do leitor.

Porque razão o postulado das paralelas levanta tantos problemas e parece dominar a questão? A verdade é que o postulado das paralelas já levanta problemas desde a Antiguidade. O que afirmam os historiadores da ciência é que não era visto como tão evidente como os restantes. E porquê? Temos de o dizer claramente. Porque tem implícita a ideia de infinito (a prolongação indefinida das rectas…). Para a geometria euclidiana introduzir infinitos tinha sempre um elemento de desconforto. Por isso a grande polémica ocorre no século XIX. É a mesma época que se separa da metafísica cristã (ou se pretende separar mais do que se separou), que discute mais acesamente a questão. É evidente. A questão surge por razões intrinsecamente matemáticas também: tinham surgido alternativas consistentes à geometria euclidiana. Mas como se compreende o furor da discussão dos que defendem a geometria euclidiana até ao fim e como Cayley e Félix Klein vêem nas não euclidianas apenas uma forma das projectivas? A centralidade e o calor da discussão dizem algo mais do que a questão simplesmente matemática poderia dar a entender.

Porque não falo de questões um pouco mais actuais, como os esquemas e os topos de Grothendieck, como generalização do conceito de variedade os primeiros, e a superação entre uma geometria objectual e contextual os segundos? Fá-lo-ei. Mas só quando tiver algo de jeito a dizer a propósito.

Para que serve tratar destas questões no espaço público? Para apanhar o pensamento plebeu nas suas ratoeiras.



Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Espaços euclidianos I






A época deslumbra-se com coisas excitantes. O mundo é estranho, tudo foi posto em casa. Tudo é «relativo», esboroado, em decomposição. Vejam-se os espaços não euclidianos. O espírito popular gosta de se comprazer nestas ideias de decadência, de picante, e devemos deixar às tradições populares o seu folclore.

Mas eu, que me comprometi a falar entre adultos, continuo no meu trajecto de falar seriamente, ou seja, com algum humor, sobre questões sérias.

A ideia de dissolução não atravessa apenas os aspectos mais próximos da cultura popular, na sua versão antropológica, sociológica, mesmo histórica. Quer-se dominante também nos mais sólidos recantos do pensamento humano, e por isso compraz-se em encontrar na matemática a mesma tendência.

Seja. Vejamos por isso mais uma pegada do selvagem, como ela desarruma os caminhos.

O primeiro problema é que a ideia de espaço euclidiano… não é euclidiana. Isto porque a ideia de espaço não é euclidiana. Se bem me lembro, Euclides fala de «chora», de lugares, mas nunca de espaço. O que é então esta ideia de espaço euclidiano?

Para começar, baseia-se na ideia de um espaço absoluto e de um tempo absoluto. A ideia é de Newton, mas não é inocente. Newton não precisava dela para nada na sua física. A prova é que Leibniz não precisou dela. A ideia de Newton não é de Newton: é aristotélica. Como todos os grandes revolucionários, Newton insistiu fortemente num ponto reaccionário, faz renascer um arcaísmo, o da física de Aristóteles.

A segunda ideia é a de que este espaço é infinito. Aqui a ideia já não é aristotélica, mas cristã. A ideia de infinito como centro positivo do pensamento é cristã, vem de desenvolvimentos da patrística. Demonstração também em tempos já feita.

A terceira ideia é a de que este espaço é um cubo infinito (pode ser uma esfera ou um cilindro, mas a ideia central é a de um cubo) onde são embebidas coordenadas que têm um ponto zero arbitrário. A partir daí as figuras são construídas por referência a essas coordenadas. A geometria euclidiana é objectual: estuda uma figura geométrica em si, ou a relação entre figuras geométricas (com as cónicas, por exemplo). Não contextual. Esta ideia contextual da geometria não é euclidiana, vem de Fermat e de Descartes.

Só o quarto elemento é euclidiano: o do postulado das paralelas. Mas se bem virmos, como o estudo é contextual, em função de eixos de referência, o postulado das paralelas acaba por não ter real importância no espaço euclidiano. Quase que se torna um elemento ideológico.

O dito espaço euclidiano resulta, pois, de uma composição de elementos algo estranha:

(Aristóteles+Newton) +(Cristianismo+Patrística) +(Fermat+Descartes) +Euclides.

O dito espaço euclidiano apenas é euclidiano lateralmente. Esta construção foi sendo feita gradualmente. E para vermos este espaço claramente enunciado a verdade é que temos de esperar pelo século XIX. É precisamente na altura em que é posto a nu na sua estrutura que é objecto de discussão. Pode-se afirmar: Não era discutido, porque era o espaço natural dos matemáticos. Não é verdade. Foi gradualmente que se foi tornando assento da matemática. E é precisamente ao longo do século XIX que é tão mais defendido, quanto mais atacável parece ser. Não surgiu de geração espontânea.

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