Espaços euclidianos I
A época deslumbra-se com
coisas excitantes. O mundo é estranho, tudo foi posto em casa. Tudo é
«relativo», esboroado, em decomposição. Vejam-se os espaços não euclidianos. O espírito
popular gosta de se comprazer nestas ideias de decadência, de picante, e
devemos deixar às tradições populares o seu folclore.
Mas eu, que me comprometi
a falar entre adultos, continuo no meu trajecto de falar seriamente, ou seja,
com algum humor, sobre questões sérias.
A ideia de dissolução não
atravessa apenas os aspectos mais próximos da cultura popular, na sua versão antropológica,
sociológica, mesmo histórica. Quer-se dominante também nos mais sólidos
recantos do pensamento humano, e por isso compraz-se em encontrar na matemática
a mesma tendência.
Seja. Vejamos por isso
mais uma pegada do selvagem, como ela desarruma os caminhos.
O primeiro problema é que
a ideia de espaço euclidiano… não é euclidiana. Isto porque a ideia de espaço
não é euclidiana. Se bem me lembro, Euclides fala de «chora», de lugares, mas
nunca de espaço. O que é então esta ideia de espaço euclidiano?
Para começar, baseia-se
na ideia de um espaço absoluto e de um tempo absoluto. A ideia é de Newton, mas
não é inocente. Newton não precisava dela para nada na sua física. A prova é
que Leibniz não precisou dela. A ideia de Newton não é de Newton: é aristotélica.
Como todos os grandes revolucionários, Newton insistiu fortemente num ponto reaccionário,
faz renascer um arcaísmo, o da física de Aristóteles.
A segunda ideia é a de
que este espaço é infinito. Aqui a ideia já não é aristotélica, mas cristã. A
ideia de infinito como centro positivo do pensamento é cristã, vem de desenvolvimentos
da patrística. Demonstração também em tempos já feita.
A terceira ideia é a de
que este espaço é um cubo infinito (pode ser uma esfera ou um cilindro, mas a
ideia central é a de um cubo) onde são embebidas coordenadas que têm um ponto
zero arbitrário. A partir daí as figuras são construídas por referência a essas
coordenadas. A geometria euclidiana é objectual: estuda uma figura geométrica
em si, ou a relação entre figuras geométricas (com as cónicas, por exemplo).
Não contextual. Esta ideia contextual da geometria não é euclidiana, vem de
Fermat e de Descartes.
Só o quarto elemento é euclidiano:
o do postulado das paralelas. Mas se bem virmos, como o estudo é contextual, em
função de eixos de referência, o postulado das paralelas acaba por não ter real
importância no espaço euclidiano. Quase que se torna um elemento ideológico.
O dito espaço euclidiano resulta,
pois, de uma composição de elementos algo estranha:
(Aristóteles+Newton)
+(Cristianismo+Patrística) +(Fermat+Descartes) +Euclides.
O dito espaço euclidiano
apenas é euclidiano lateralmente. Esta construção foi sendo feita gradualmente.
E para vermos este espaço claramente enunciado a verdade é que temos de esperar
pelo século XIX. É precisamente na altura em que é posto a nu na sua estrutura
que é objecto de discussão. Pode-se afirmar: Não era discutido, porque era o espaço
natural dos matemáticos. Não é verdade. Foi gradualmente que se foi tornando
assento da matemática. E é precisamente ao longo do século XIX que é tão mais
defendido, quanto mais atacável parece ser. Não surgiu de geração espontânea.
0 comentários:
Enviar um comentário