terça-feira, 4 de agosto de 2015

O caso grego II


A mais usual é a instância da legitimidade. A maior discussão centra-se na legitimidade que têm os gregos para exigiram novos perdões, são vítimas da finança internacional, das humilhações alemãs. Enfim, uma longa História de martírio e vitimização.

 

Que a discussão se centre na legitimidade explica-se por razões antropológicas. Se bem repararmos, a fauna que discute está banhada pela modernidade presente (há muitas modernidades). E esta modernidade caracteriza-se pela imensamente pobre teoria dos valores, pelo excesso de direito e pelo paradigma do adolescente vítima. Tudo é vítima, até os povos e os governos democraticamente eleitos.

A questão é que os gregos não têm qualquer legitimidade.

Em primeiro lugar, que me lembre, a dívida que fizeram foi criada por governos democraticamente eleitos. Não me lembro do dia em que os gregos, como aliás os restantes povos do Sul da Europa, tivessem recebido uma ameaça para fazerem mais dívida. Admitir que a sua dívida é ilegítima é afirmar que governos democraticamente eleitos são ilegítimos.

Em segundo lugar, o argumento é o de que os gregos foram vítimas da finança internacional, dos malandros dos bancos e das suas maldosas propostas de créditos. Este argumento em relação a simples particulares já merece algumas subtis distinções. Mas quando estamos a falar de Estados, que têm profissionais especializados a negociar dívida pública, parece-me que caem pela base. Se os bancos engaram os pobres funcionários gregos isso apenas quer dizer que mesmo as instituições de elite gregas são formadas por incompetentes que se deixam enganar na área da sua especialidade, a finança. Esse argumento apenas implicaria que o Estado grego precisaria de uma limpeza fortíssima. Se mesmo as suas elites são constituídas por incompetentes, carece de um saneamento enérgico. É o velho mito de que o soberano, no caso o povo, foi vítima de maus conselheiros. Mito da gleba, é bom de se ver.

Em terceiro lugar, teriam sido as elites as culpadas e não o povo grego. Mais uma vez, o que se pretende afirmar é que o povo grego votava, mas o poder político era uma brincadeira. A verdade é que o povo grego – e mais uma vez saliento, como a maioria dos povos do sul da Europa -, sufragou promessas eleitorais demagógicas, irrealistas, lesivas dos seus interesse de logo prazo. Um povo numa democracia é soberano, não é vítima.

De seguida vem um rol de inépcias da parte dos anti-europeístas, que de repente se lembram da grandeza e do sofrimento da Grécia. Cada um destes argumentos centrados na legitimidade cai pela sua inépcia.

Devemos aos gregos a democracia, uma imensa cultura… este argumento apresenta tantos vícios que se torna difícil desfiar todos eles. Estamos a falar dos mesmos gregos que os de há 2500 anos? Mesmo que estejamos, por que razão para os povos continua a valer um princípio aristocrático que foi recusado para as pessoas singulares? Que pensamento pervertido é este que recusa que eu lembre a grandeza dos meus antepassados por isso ser considerado presunção, mas já considera perfeitamente legítimo que um povo fale dos seus «egrégios avós», quando é duvidoso que a maioria dos avós o sejam? Não percebem as pessoas que a comparação com os meus antepassados reais apenas mostraria a decadência a que cheguei, porque tenho de trabalhar para viver, assim como comparação entre a Afrodite lavadeira e a deusa apenas sublinha que nada vai a favor da primeira. E quanto ao que devemos aos antigos gregos, lembremos que o aprendemos em senhores como Voss, von Willamowitz-Moellendorf, Polhenz, Jaeger, Erwin Rohde, Usener… alguém mais atento há-de reparar que refiro nomes alemães.

Também se lembra agora alguma fauna do imenso sofrimento que tiveram os gregos durante a dominação turca. Não deixa de ser curioso que os mesmos que lutaram pela adesão turca porque querem uma Europa em desagregação, e que por isso sempre insistiram na maravilha europeia da cultura turca, agora se lembrem que a Turquia humilhou e explorou de forma cruel durante 400 anos os gregos. Para esquecer este argumento da próxima vez que defenderem adesão turca…

 

Mas as eleições foram democráticas, e por isso os gregos têm o direito de exigir a renegociação da dívida. Bom argumento este. Na minha casa com a minha família decido democraticamente, aliás por unanimidade, que o meu vizinho nos tem de sustentar. Anunciamos-lho com amorosa alegria e celebração democrática que decidimos que ele nos sustentasse. E não e que o fascista do vizinho não quer respeitar a vontade democrática da minha família e não me quer sustentar? Admita-lo: os vizinhos podem ser por vezes muito desrespeitadores da vontade e da desgraça dos outros.

 

Mas o argumento de legitimidade mostra que este só é possível numa época pouco exigente intelectualmente. Vejamos: quem são os culpados? Não o povo grego, mas as suas elites, os ricos e os políticos. Mas estes foram por suas vezes vítimas. De quem? Das finanças internacionais e dos credores. Mas quem faz parte destes credores? Países democráticos em que os povos se identificam com os seus governantes, como os países nórdicos, e do centro e leste europeus. Ou seja, um povo que diz que foi enganado pelos seus políticos, em quem não confia, culpa em último grau governos que são objecto da confiança do povo. O pecado alemão no fim de contas é o de ter um povo colaboracionista, em acordo com o seu governo, por não se sentir traído por ele, mas por ele representado. Não era suposto ser isto a democracia? De todo. Na imagem do mundo que subjaz aos que defendem as veleidades gregas, democrata é o «maquisard», o salteador de estrada que rouba os ricos, mesmo que não eleito. Se tirarmos a pele de cordeiro destes novos democratas, percebemos afinal a sua genealogia: revolucionário que não arrisca o sangue, a sua concepção de democracia nada tem a ver com eleições, mas com emboscadas.

 

0 comentários: